terça-feira, 15 de julho de 2014

Gilbert Keith Chesterton






parte 1/2 (1 de 2)



O VERDADEIRO PROBLEMA com este nosso mundo não é que se trata de um mundo sem razão, nem tampouco de um mundo razoável. O tipo mais comum de problema é que se trata de um mundo quase razoável, mas não totalmente. A vida não é um ilogismo; todavia, é uma cilada para os lógicos. Parece simplesmente um pouco mais matemática e regular do que é; sua exatidão é óbvia, mas sua inexatidão está escondida; sua loucura está à espreita. Vou dar um exemplo grosseiro do que quero dizer. Suponhamos que alguma criatura matemática proveniente da lua examinasse o corpo humano; ela imediatamente veria que o fato essencial nesse caso é que o corpo é duplicado. Um homem contém dois homens: um à direita que se parece exatamente com outro à esquerda. Depois de notar que há um braço do lado direito e outro do lado esquerdo, uma perna à direita e outra à esquerda, ela poderia ir adiante e ainda encontrar de cada lado o mesmo número de dedos nas mãos, o mesmo número de dedos nos pés, olhos geminados, orelhas geminadas, narinas geminadas e até lobos do cérebro geminados. No mínimo ela tomaria o fato como lei; e depois, quando encontrasse um coração de um lado, ela deduziria a presença de outro coração do outro lado. E exatamente nesse momento, no ponto em que se sentisse mais segura de estar certa, ela estaria errada.

É esse silencioso desvio milimétrico da precisão que constitui o elemento misterioso presente em tudo. Parece uma espécie de traição secreta do universo. Uma maçã ou uma laranja é redonda o suficiente para ser chamada de redonda, e, no entanto, no fim das contas, não é redonda. A própria Terra tem a forma de uma laranja para induzir algum simples astrônomo a chamá-la de globo. Em inglês dizemos "uma lâmina de grama" em alusão à lâmina de uma espada, porque ambas têm uma extremidade pontuda; mas não é bem assim.

Em todas as coisas, em toda parte, existe o elemento do misterioso e do incalculável. Ele foge aos racionalistas, mas só escapa no último momento. Da grande curvatura da Terra alguém poderia facilmente inferir que cada centímetro dela apresentasse a mesma curva. Pareceria racional que, assim como um ser humano tem um cérebro de ambos os lados, ele devesse ter um coração dos dois lados. Todavia, os cientistas ainda estão organizando expedições para descobrir o Pólo Norte, porque eles gostam tanto de paisagens planas. Os cientistas estão organizando expedições para descobrir o coração do ser humano; e quando tentam descobri-lo, geralmente procuram do lado errado. Ora, a verdadeira percepção ou inspiração é mais bem testada quando se observa se ela detecta essas malformações ou surpresas ocultas. Se o nosso matemático da lua visse dois braços e duas orelhas, ele poderia deduzir as duas omoplatas e as duas metades do cérebro. Mas se ele adivinhasse que o coração do homem estava no lugar certo, então eu deveria chamá-lo de algo mais que um matemático.

Ora, essa é exatamente a reivindicação que venho fazendo para o cristianismo. Não simplesmente que ele deduz verdades lógicas, mas que quando de repente se torna ilógico, ele encontrou, por assim dizer, uma verdade ilógica. Ele não apenas acerta em relação às coisas, mas também erra (se assim se pode dizer) exatamente onde as coisas saem erradas. Seu plano se adapta às irregularidades ocultas e espera o inesperado. E simples no que se refere à verdade sutil. Admite que o homem tem duas mãos, mas não admite (embora todos os modernistas lamentem o fato) a dedução óbvia de que tenha dois corações.

Meu único propósito neste capítulo é mostrar isso; mostrar que quando sentimos a existência de algo estranho na teologia cristã, geralmente vamos descobrir que existe algo estranho na verdade.

Eu aludi a uma frase absurda que afirmava que não se pode crer neste ou naquele credo em nossa época. E claro que se pode acreditar em qualquer coisa em qualquer época. Mas, embora pareça estranho, há de fato um sentido em que um credo, quando digno de alguma crença, pode ser abraçado mais firmemente numa sociedade complexa do que numa simples. Se um homem julgar que o cristianismo é verdadeiro em Birmingham, ele realmente tem razões mais claras para ter fé do que se o tivesse julgado verdadeiro em Mércia. Pois quanto mais complicada parecer a coincidência, tanto menos ela pode ser uma coincidência. Se caíssem flocos de neve na forma, digamos, do coração de Midlothian,13 poderia ser um acidente. Mas se caíssem flocos de neve com a forma exata do labirinto de Hampton Court, acho que se poderia chamar isso de milagre.

É exatamente esse tipo de milagre que passei a perceber na filosofia do cristianismo. A complicação do nosso mundo moderno prova a verdade do credo mais perfeitamente do que qualquer um dos simples problemas das épocas de fé. Foi em Notting Hill e Battersea que comecei a ver que o cristianismo era verdadeiro. E por isso que a fé tem aquela elaboração de doutrinas e detalhes que tanto incomoda os que admiram o cristianismo sem acreditar nele. Quando alguém abraça uma crença, essa pessoa se sente orgulhosa de sua complexidade, como os cientistas se sentem orgulhosos da complexidade da ciência. O fato mostra como ela é rica em descobertas.

Se a crença simplesmente está certa, é um elogio dizer que ela é elaborada. Uma vareta poderia encaixar-se perfeitamente num buraco, ou uma pedra num vão, por mero acaso. Mas uma chave e uma fechadura são ambas complexas. E se uma chave se encaixa numa fechadura, você sabe que se trata da chave certa.

Mas essa complicada exatidão da coisa dificulta grandemente o que me proponho fazer agora: descrever esse acúmulo de verdade. Fica muito difícil para um homem defender alguma coisa da qual ele está inteiramente convencido. E comparativamente fácil quando se está convencido em parte. Ele está convencido apenas em parte porque descobriu esta ou aquela prova da coisa, e consegue explicá-la. Mas ninguém se sente realmente convencido acerca de uma teoria filosófica quando apenas descobre alguma coisa para prová-la.

A pessoa fica realmente convencida quando descobre que tudo prova aquela teoria. E quanto mais numerosas forem as razões apontando para essa convicção, tanto mais confusa ela ficará se de repente for solicitada a resumi-las. Assim, se alguém perguntasse a um homem de inteligência comum, de supetão: "Por que você prefere a civilização à selvageria?", ele olharia desesperado ao redor contemplando um objeto depois do outro, e só saberia responder vagamente: "Bem, existe esta estante de livros... e o carvão na caixa de carvão... e pianos... e a polícia". Toda a argumentação em defesa da civilização consiste no fato de que a argumentação em sua defesa é complexa. A civilização fez tantas coisas. Mas essa mesma multiplicidade de provas que deveria tornar a resposta irrefutável torna-a impossível.

Portanto, toda convicção completa está envolvida numa espécie de desamparo. A crença é tão enorme que se exige muito tempo para colocá-la em ação. Essa hesitação, muito estranhamente, surge sobretudo de uma indiferença acerca do ponto onde se deveria começar. Todas as estradas conduzem a Roma; e isso é uma razão que explica por que muitos nunca chegam lá. No caso desta defesa da convicção cristã confesso que eu tanto poderia começar a discussão com uma coisa quanto com outra; poderia começar com um nabo ou um táxi. Mas, se eu tiver de ter o mínimo de cuidado para esclarecer o que quero dizer, será mais sensato, na minha opinião, continuar os argumentos gerais do último capítulo, que tinha como objetivo insistir na primeira dessas coincidências, ou melhor, ratificações místicas.

Tudo o que eu até então ouvira sobre a teologia cristã me alienara dela. Eu era pagão aos doze anos de idade e um perfeito agnóstico aos dezesseis; e não posso entender ninguém que ultrapasse os dezessete anos sem ter-se feito uma pergunta tão simples. Eu retive, de fato. uma obscura reverência por uma deidade cósmica e um grande interesse histórico pelo Fundador do cristianismo. Mas certamente o via como um homem; embora talvez achasse que, mesmo sob esse aspecto, ele levasse vantagem sobre alguns de seus críticos modernos.

Li a literatura cética e científica do meu tempo — tudo nesse campo, pelo menos tudo o que pude encontrar em língua inglesa ao alcance de minhas mãos; e não li mais nada; quero dizer, mais nada de qualquer outro cunho filosófico. As obras sensacionalistas que também li pertenciam de fato a uma tradição heróica e sadia do cristianismo; mas eu não sabia disso naquele tempo. Nunca li uma linha de apologética cristã. Leio o menos possível disso atualmente.

Foram Huxley, Herbert Spencer e Bradlaugh que me trouxeram de volta à teologia ortodoxa. Eles me semearam na mente as primeiras fortes dúvidas da dúvida. Nossas avós estavam muito certas quando diziam que Tom Paine e os livres-pensadores perturbavam a cabeça. Perturbavam mesmo. Perturbaram a minha de um modo horrível. O nacionalista me fez perguntar se a razão tinha alguma utilidade qualquer; e, quando terminei Herbert Spencer, eu já fora tão longe que duvidei (pela primeira vez na vida) se a evolução havia sequer acontecido. Quando depus a última das palestras atéias do Coronel Ingersoll, irrompeu o terrível pensamento: 'Tu quase me persuadiste a ser cristão". Eu o era de um modo desesperado.

Esse estranho efeito dos grandes agnósticos despertando dúvidas mais profundas do que aquelas que eles mesmos alimentavam poderia ser ilustrado de muitas maneiras. Tomo apenas uma. A medida que eu lia e relia todas as explicações não-cristãs ou anticristãs da fé, de Huxley a Bradlaugh, uma lenta e terrível impressão se formava gradativa mas graficamente em minha cabeça — a impressão de que o cristianismo deve ser maximamente extraordinário. Pois ele, no meu modo de entender, não só tinha os vícios mais ardentes, mas aparentemente tinha um talento místico para combinar vícios que pareciam incompatíveis entre si.

O cristianismo era atacado de todos os lados e por todas as razões contraditórias. Mal um nacionalista acabara de demonstrar que ele pendia demais para o oriente, outro demonstrava com igual clareza que ele pendia demais para o ocidente. Mal a minha indignação se arrefecera diante de sua configuração quadrada angular e agressiva, minha atenção era novamente chamada para observar e condenar sua irritante natureza redonda e sensual. Caso algum leitor não tenha percebido aquilo de que estou falando, vou dar aleatoriamente os exemplos de que me lembro para ilustrar a contradição interna dos ataques dos céticos. Apresento quatro ou cinco casos; tenho mais cinqüenta.

Assim, por exemplo, eu me comovia muito com o eloqüente ataque contra o cristianismo pelo seu pessimismo desumano; pois eu pensava (e ainda penso) que o pessimismo sincero é o pecado que não tem perdão. O pessimismo insincero é um refinamento social, mais agradável que desagradável; e felizmente quase todo pessimismo é insincero.

Mas se o cristianismo era, como essas pessoas diziam, algo puramente pessimista que se opunha à vida, então eu estava perfeitamente preparado para explodir a Catedral de São Paulo em Londres. O fato, porém, extraordinário era o seguinte: Eles me provavam no Capítulo 1, para minha plena satisfação, que o cristianismo era demasiado pessimista; e depois, no Capítulo 2, começavam a me provar que ele era, em grande parte, otimista demais. Uma acusação contra o cristianismo dizia que ele, com suas mórbidas lágrimas e terrores, impedia que os homens buscassem a alegria e a liberdade no seio da natureza. Mas outra acusação era que ele confortava os homens com uma providência fictícia, e os situava num mundo cor-de-rosa e branco.

Um grande agnóstico perguntava por que a natureza não era suficientemente bonita, e por que era difícil ser livre. Outro grande agnóstico objetava que o otimismo cristão, "o manto do faz-de-conta tecido por mãos piedosas", escondia de nós o fato de que a natureza era feia, e era impossível ela ser livre. Um racionalista mal terminara de chamar o cristianismo de pesadelo, e outro já começava a chamá-lo de falso paraíso.

Isso me intrigava; as acusações pareciam inconsistentes. O cristianismo não podia ser, ao mesmo tempo, a máscara negra de um mundo branco, e também a máscara branca de um mundo negro. A condição do cristão no mundo não podia ser, ao mesmo tempo, tão confortável que era uma covardia agarrar-se a ela, e tão desconfortável que era uma loucura suportá-la. Se o cristianismo falsificava a visão humana, devia falsificá-la de um jeito ou de outro; ele não podia usar óculos que eram verdes e também cor-de-rosa. Eu saboreei com alegria enorme, como fizeram todos os jovens daquela época, os sarcásticos insultos desferidos por Swinburne contra a insipidez do credo...

Tu conquistaste, ó pálido Galileu; o mundo com teu hálito assumiu a cor cinza.14

Mas quando eu li as explicações do paganismo dadas pelo mesmo poeta (como, por exemplo, em "Atalanta"), concluí que, possivelmente, antes de o Galileu respirar sobre ele, o mundo era ainda mais cinza. De fato, o poeta defendia, em abstrato, que a vida em si era negra como o breu. E, mesmo assim, o cristianismo de algum modo a obscurecera. O mesmo homem que acusava o cristianismo de pessimismo era ele também um pessimista. Achei que devia haver algo de errado nisso. E por um louco instante passou-me pela cabeça que os melhores juizes para julgar a relação da religião com a felicidade talvez não fossem aqueles que, segundo seus próprios relatos, não tinham nem uma coisa nem outra.

Deve-se entender que não fui precipitado ao concluir que as acusações eram falsas ou os acusadores eram tolos. Simplesmente deduzi que o cristianismo devia ser algo até mais estranho e mais perverso do que eles imaginavam. Uma coisa poderia ter esses dois vícios contraditórios; mas, nesse caso, deveria ser uma coisa bastante esquisita. Um homem poderia ser gordo demais num ponto e magro demais em outro; mas ele seria uma figura estranha. A essa altura os meus pensamentos concentravam-se apenas na figura estranha da religião cristã; eu não alegava a existência de nenhuma figura estranha na mente racionalista.

Aqui está outro argumento da mesma natureza. Eu senti que um forte argumento contra o cristianismo residia na acusação de que existe algo de tímido, monástico e pouco viril envolvendo tudo o que é chamado de "cristão", especialmente em sua atitude perante a resistência e a luta. Os grandes céticos do século XIX eram muito viris. Bradlaugh de um modo expansivo, Huxley de um modo reticente, foram sem dúvida homens. Numa comparação, parecia-me claro que havia algo de fraco e por demais paciente envolvendo os conselhos cristãos. O paradoxo do evangelho sobre a outra face, o fato de os sacerdotes jamais lutarem, uma centena de coisas tornava plausível a acusação de que o cristianismo era uma tentativa de fazer o homem parecer-se demais com a ovelha.

Li isso e acreditei, e, se não tivesse lido nada em contrário, teria continuado acreditando. Mas li algo muito diferente. Passei à página seguinte do meu manual agnóstico, e meu cérebro ficou de cabeça para baixo. Agora eu descobria que tinha de odiar o cristianismo não por ele lutar pouco demais, mas por sua luta excessiva. Parecia que o cristianismo era a matriz de todas as
guerras. Ele inundara o mundo de sangue.

Eu ficara absolutamente zangado com o cristão porque ele nunca se zangava. E agora pediam-me que me zangasse com ele porque sua raiva tinha sido o maior e mais horrível fenômeno da história humana; porque sua raiva ensopara a terra e obscurecera o sol. As mesmas pessoas que censuravam o cristianismo pela brandura e não-resistência dos seus mosteiros também o censuravam pela violência e pelo valor das Cruzadas. Foi por culpa do pobre e velho cristianismo (de um jeito ou de outro) que Eduardo, o Confessor, não quis lutar, ao passo que Ricardo Coração de Leão o fez. Os quacres, diziam-nos, eram os únicos cristãos típicos; e, no entanto, os massacres de Cromwell e Alva eram típicos crimes cristãos.

O que poderia significar tudo isso? O que era esse cristianismo que sempre proibia a guerra e sempre produzia guerras? Qual poderia ser a natureza dessa coisa que se podia xingar primeiro porque não lutava e, segundo, porque estava sempre lutando? Em que mundo enigmático nascera esse monstruoso assassinato e essa monstruosa brandura? A configuração do cristianismo assumia uma figura mais estranha a cada instante.

Apresento um terceiro argumento; o mais estranho de todos, porque envolve a única verdadeira objeção à fé. A única objeção real à religião cristã é simplesmente que ela é uma única religião. O mundo é um lugar amplo, cheio de tipos de pessoas muito diferentes. O cristianismo (alguém poderia razoavelmente dizer) é uma única coisa que se limita a uma única espécie de gente; começou na Palestina e praticamente parou com a Europa.

Eu me sentia devidamente impressionado com esse argumento na juventude, e muitas vezes me sentia atraído para a doutrina freqüentemente pregada pelas Sociedades Éticas — isto é, a doutrina de que existe uma única grande igreja inconsciente de toda a humanidade, estruturada sobre a onipresença da consciência humana. Os credos, diziam, dividem os homens; mas pelo menos as doutrinas morais os uniram. A alma pode buscar as terras e épocas mais estranhas e remotas e lá ainda encontra o senso comum ético essencial. Ela poderia encontrar Confúcio debaixo de árvores orientais, e ele estaria escrevendo: "Não furtarás". Ela poderia decifrar o mais obscuro hieróglifo no mais primitivo deserto, e o significado decifrado seria: "As crianças devem dizer a verdade".

Eu acreditava nessa doutrina da fraternidade de todos os homens na posse do senso moral, e ainda acredito nisso — junto com outras coisas. E ficava totalmente aborrecido com o cristianismo por sugerir (segundo eu imaginava) que épocas inteiras de seres humanos haviam sido totalmente privados dessa luz da justiça e da razão. Mas depois eu descobri uma coisa assombrosa. Descobri que as mesmas pessoas que diziam que a humanidade era uma única igreja de Platão a Emerson também diziam que a moralidade havia mudado totalmente, e o que era certo numa época era errado em outra.

Se eu pedisse, digamos, um altar, diziam-me que não precisava disso, pois os homens, nossos irmãos, proferiam claros oráculos e um único credo em seus costumes e ideais universais. Mas se eu discretamente insistisse que um dos costumes universais dos homens era ter um altar, então os meus agnósticos professores assumiam uma posição diametralmente oposta e me diziam que os homens sempre haviam vivido nas trevas com superstições de selvagens. Eu descobri que era seu escárnio diário contra o cristianismo dizer que ele era a luz de um único povo e deixara todos os outros morrerem nas trevas.

Mas eu também descobri que era sua especial vangloria dizer que a ciência e o progresso eram descobertas de um único povo, e todos os outros povos haviam perecido nas trevas. Seu principal insulto ao cristianismo era de fato sua principal vangloria, e parecia haver uma estranha injustiça envolvendo toda a sua relativa insistência nas duas coisas. Quando se tratava de algum agnóstico ou pagão, devíamos nos lembrar de que todos os homens tinham uma única religião; quando se tratava de algum místico ou espiritualista, devíamos apenas considerar como eram absurdas as religiões que alguns homens acalentavam. Podíamos confiar na ética de Epíteto, porque a ética não mudava nunca. Não devíamos confiar na ética de Bossuet, porque a ética havia mudado. Ela mudava em duzentos anos, mas não em dois mil.

O caso começou a ficar alarmante. Não parecia tanto que o cristianismo era suficientemente perverso a ponto de incluir qualquer vício, mas sim que qualquer pau era bom para bater nele. Como seria essa coisa assombrosa que as pessoas queriam tanto contradizei; a ponto de fazê-lo sem importar-se em contradizer a si mesmas?

Eu via a mesma situação de todos os lados. Não posso dedicar mais espaço para discutir este caso em detalhes; mas, para que ninguém suponha que escolhi injustamente três argumentos acidentais, vou mencionar brevemente mais alguns. Assim, certos céticos escreveram que o grande crime do cristianismo fora o seu ataque contra a família; ele arrastara as mulheres à solidão e contemplação do claustro, longe de sua casa e filhos.

Mas, em contrapartida, outros céticos (ligeiramente mais avançados) disseram que o grande crime do cristianismo foi obrigar-nos ao casamento e à constituição de uma família; que o cristianismo condenava as mulheres à escravidão de sua casa e filhos, e lhes proibia a solidão e a contemplação. A acusação foi realmente invertida. Ou, ainda, certas frases das epístolas ou do ritual do casamento, na opinião de anticristãos, mostravam desprezo pelo intelecto da mulher. Mas descobri que os próprios anticristãos nutriam o desprezo pelo intelecto feminino; pois sua grande chacota contra a igreja na Europa era que "apenas mulheres" a freqüentavam.

Ou então, o cristianismo era censurado por seus hábitos despojados e estéreis; pelo burel e as ervilhas secas. Mas no minuto seguinte o cristianismo era censurado por sua pompa e ritualismo; seus templos de pórfiro e paramentos de ouro. Ele era ofendido por ser simples demais e por ser demasiado colorido. De novo, o cristianismo sempre fora acusado de limitar em excesso a sexualidade, quando o malthusiano Bradlaugh descobriu que ele a limitava pouco demais. Ele é muitas vezes acusado ao mesmo tempo de afetada respeitabilidade e de extravagância religiosa.



13 Condado escocês. A expressão "coração de Midlothian" refere-se a seu brasão.

14 Thou hast conquered, O pale Galilaean, the world has grown gray witli Thy breath.



Chesterton, G.K. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, pp. 85-94.


FIM DA PARTE 1


NOTA: O texto acima é a primeira parte do capítulo VI, "Paradoxos do Cristianismo", do livro "Ortodoxia" do G.K. Chesterton. A tradução é a da ed. Mundo Cristão (não encontrei outras em pdf e nem o texto completo em site algum). Depois pretendo postar outras traduções, mesmo que precise eu mesmo fazer a transcrição.

domingo, 13 de julho de 2014





O CERTO E O ERRADO COMO CHAVES PARA A COMPREENSÃO DO SENTIDO DO UNIVERSO



3.

A REALIDADE DA LEI



Volto agora ao que disse no final do primeiro capítulo: que a raça humana tem duas características curiosas. Em primeiro lugar, que os homens são assombrados pela idéia de um padrão de comportamento que se sentem obrigados a pôr em prática, o qual se poderia chamar de conduta leal, decência, moralidade ou Lei Natural. Em segundo lugar, que eles não o põem em prática. Alguns de vocês podem se perguntar por que razão chamei de "curioso" isso que pode lhes parecer a coisa mais natural do mundo. Em especial, talvez vocês me tenham achado muito duro com a humanidade; afinal de contas, aquilo que chamei de transgressão da Lei do Certo e do Errado, ou da Lei Natural, significa somente que ninguém é perfeito. E por que, ó céus, esperaria eu o contrário? Essa seria uma boa resposta se tudo o que eu pretendesse fosse medir numa balança a culpa exata que cabe a cada um de nós por não nos termos portado como queremos que os outros se portem. Não é essa, porém, a tarefa que me propus. Nesta investigação, não estou preocupado com a culpa; estou tentando descobrir a Verdade. Desse ponto de vista, a própria idéia de imperfeição, de algo que não é o que deveria ser, tem suas consequências. Se considerarmos um ente como uma pedra ou uma árvore, ele é o que é e não há sentido em dizer que deveria ser de outro jeito. É claro que podemos dizer que a pedra tem "a forma errada" se pretendemos usá-la para uma construção, ou que uma árvore não é boa porque não faz sombra suficiente. Porém, isso significa tão-somente que a pedra ou a árvore não se prestam ao uso que queremos fazer delas; não as culpamos de terem tais ou quais características, a não ser como piada. Temos consciência de que, dado um determinado clima e tipo de solo, a árvore não poderia ser em nada diferente do que é. A árvore que, de nosso ponto de vista, chamamos de "má" obedece às leis de sua natureza tanto quanto a que chamamos de "boa".

Vocês vêem aonde quero chegar? E que o que nós costumamos chamar de leis naturais — o modo pelo qual o clima age sobre a planta, por exemplo — não são leis no sentido estrito da palavra. Essa é só uma maneira de dizer. Quando afirmamos que uma pedra obedece à lei da gravidade, isso não é, por acaso, o mesmo que dizer que essa lei significa apenas "o que a pedra sempre faz"? Não pensamos realmente que a pedra, quando é solta, subitamente se lembra de que tem o dever de cair. Tudo o que queremos dizer é que ela, de fato, cai. Em outras palavras, não podemos ter certeza de que exista algo superior aos fatos mesmos, uma lei que determine o que deve acontecer e que seja diferente do que efetivamente acontece. As leis da natureza, quando aplicadas às árvores ou pedras, podem significar apenas "o que a Natureza efetivamente faz". Mas, se nos voltarmos para a Lei da Natureza Humana, ou Lei da Boa Conduta, a história é outra. É ponto pacífico que ela não significa "o que os seres humanos efetivamente fazem", já que, como eu disse antes, muitos deles não obedecem em absoluto a essa lei, e nenhum deles a observa integralmente. A lei da gravidade nos diz o que a pedra faz quando cai; já a Lei da Natureza Humana nos diz o que os seres humanos deveriam fazer e não fazem. Ou seja, quando tratamos de seres humanos, existe algo além e acima dos fatos. Existem os fatos (como os homens se comportam) e também uma outra coisa (como deveriam se comportar). No resto do universo, não há necessidade de outra coisa que não os fatos. Elétrons e moléculas comportam-se de determinada maneira e disso decorrem certos resultados, e talvez o assunto pare aí1. Os homens, no entanto, comportam-se de determinada maneira e o assunto não pára aí, já que estamos sempre conscientes de que o comportamento deles deveria ser diferente.

Isso é tão singular que ficamos tentados a nos enganar com falsas explicações. Podemos, por exemplo, afirmar que, quando você diz que um homem não deveria fazer o que fez, quer dizer a mesma coisa quando assevera que a pedra tem a forma errada: ou seja, que a atitude dele é inconveniente para você. Mas isso é simplesmente falso. Um homem que chega primeiro no trem e ocupa um bom assento é tão inconveniente quanto um homem que tira minha mala do assento e o ocupa sorrateiramente enquanto estou de costas. Porém, não culpo o primeiro homem, mas culpo o segundo. Não fico bravo — exceto talvez por um breve momento, até recuperar a razão — com uma pessoa que por acidente me faz tropeçar, mas ficot bravo com alguém que tenta me fazer tropeçar de propósito, mesmo que não consiga. Porém, foi a primeira pessoa que efetivamente me machucou, e não a segunda. Às vezes, o comportamento que julgo mau não é inconveniente para mim de modo algum, muito pelo contrário. Na guerra, cada um dos lados beligerantes achará muito útil um traidor do lado oposto; porém, apesar de usá-lo e de recompensá-lo pelos serviços prestados, o considerará um verme em forma humana. Assim, não podemos dizer que o que chamamos de boa conduta alheia é simplesmente a conduta que nos é útil. E, quanto à nossa boa conduta, parece-me óbvio que não se trata da que nos traz vantagens. Trata-se, isto sim, de ficar contente com 30 xelins quando poderíamos ter ganho três libras; de fazer o dever de casa honestamente quando poderíamos copiar o do vizinho; de respeitar uma moça quando gostaríamos de ir para a cama com ela; de não nos afastar de um posto perigoso quando poderíamos escapar para um lugar mais seguro; de manter a palavra quando preferiríamos faltar com ela; de falar a verdade mesmo que assim pareçamos idiotas perante os outros.

Certas pessoas dizem que, apesar de a boa conduta não ser o que traz vantagens para cada pessoa individualmente, pode significar o que traz vantagens para a humanidade como um todo; e, portanto, a coisa não seria tão misteriosa. Os seres humanos, no fim das contas, possuem algum bom senso; percebem que a segurança e a felicidade só são possíveis numa sociedade em que cada qual age com lealdade, e é por perceber isso que tentam conduzir-se com decência. Ora, é perfeitamente verdadeira a idéia de que a segurança e a felicidade só podem vir quando os indivíduos, as classes sociais e os países são honestos, justos e bons uns com os outros. É uma das verdades mais importantes do mundo. Ela só não consegue explicar por que temos tais e tais sentimentos diante do Certo e do Errado. Se eu perguntar: "Por que devo ser altruísta?", e você responder: "Porque isso é bom para a sociedade", poderei retrucar: "Por que devo me importar com o que é bom para a sociedade se isso não me traz vantagens pessoais?", ao que você terá de responder: "Porque você deve ser altruísta" — o que nos leva de volta ao ponto de partida. O que você diz é verdade, mas não nos faz avançar. Se um homem pergunta o motivo de se jogar futebol, de nada adianta responder que é "fazer gols", pois tentar fazer gols é o próprio jogo, e não o motivo pelo qual o jogamos. No final, estamos dizendo somente que "futebol é futebol" — o que é verdade, mas não precisa ser dito. Da mesma forma, se uma pessoa pergunta o motivo de se agir com decência, não vale a pena responder "para o bem da sociedade", pois tentar beneficiar a sociedade, ou, em outras palavras, ser altruísta (pois "sociedade", no fim das contas, significa apenas "as outras pessoas"), é um dos elementos da decência. Tudo o que se estará dizendo é que uma conduta decente é uma conduta decente. Teríamos dito a mesma coisa se tivéssemos parado na declaração de que "As pessoas devem ser altruístas". E é nesse ponto que eu paro. Os homens devem ser altruístas, devem ser justos. Não que os homens sejam altruístas ou gostem de sê-lo, mas que devem sê-lo. A Lei Moral, ou Lei da Natureza Humana, não é simplesmente um fato a respeito do comportamento humano, como a Lei da Gravidade é ou pode ser simplesmente um fato a respeito do comportamento dos objetos pesados. Por outro lado, não é mera fantasia, pois não conseguimos nos desvencilhar dessa idéia; se conseguíssemos, a maior parte das coisas que dizemos sobre os homens seria absurda. Ela também não é uma simples declaração de como gostaríamos que os homens se comportassem para a nossa conveniência, pois o comportamento que taxamos de mau ou injusto nem sempre é inconveniente, e, muitas vezes, é exatamente o contrário. Consequentemente, essa Regra do Certo e do Errado, ou Lei da Natureza Humana, ou como quer que você queira chamá-la, deve ser uma Verdade — uma coisa que existe realmente, e não uma invenção humana. E, no entanto, não é um fato no mesmo sentido em que o comportamento efetivo das pessoas é um fato. Começa a ficar claro que teremos de admitir a existência de mais de um plano de realidade; e que, neste caso em particular, existe algo que está além e acima dos fatos comuns do comportamento humano, algo que no entanto é perfeitamente real — uma lei verdadeira, que nenhum de nós elaborou, mas que nos sentimos obrigados a cumprir.





1. Não acredito que "o assunto pare aí", como você verá mais adiante. Só quis dizer que, a se levar em conta somente os argumentos dados até aqui, pode ser que pare.





4.

O QUE EXISTE POR TRÁS DA LEI



Vamos fazer um resumo de tudo o que vimos até aqui. No caso das pedras, das árvores e de coisas dessa natureza, o que chamamos de Lei Natural pode não ser nada além de uma força de expressão. Quando você diz que a natureza é governada por certas leis, quer dizer apenas que a natureza, de fato, se comporta de certa forma. As chamadas "leis" talvez não tenham realidade própria, talvez não estejam além e acima dos fatos que podemos observar. No caso do homem, porém, percebemos que as coisas não são bem assim. A Lei da Natureza Humana, ou Lei do Certo e do Errado, é algo que transcende os fatos do comportamento humano. Neste caso, além dos fatos em si, existe outra coisa — uma verdadeira lei que não inventamos e à qual sabemos que devemos obedecer.

Quero considerar agora o que isso nos diz sobre o universo em que vivemos. Desde que o homem se tornou capaz de pensar, ele se pergunta no que consiste o universo e como ele veio a existir. Grosso modo, dois pontos de vista foram sustentados. O primeiro deles é o que chamamos de materialista. Quem o adota afirma que a matéria e o espaço simplesmente existem e sempre existiram, ninguém sabe por quê. A matéria, que se comporta de formas fixas, veio, por algum acidente, a produzir criaturas como nós, criaturas capazes de pensar. Numa chance em mil, um corpo se chocou contra o sol e gerou os planetas. Por outra chance infinitesimal, as substâncias químicas necessárias à vida e a temperatura correta se fizeram presentes num desses planetas, e, assim, uma parte da matéria desse planeta ganhou vida. Depois, por uma longuíssima série de coincidências, as criaturas viventes se desenvolveram até se tornarem seres como nós. O outro ponto de vista é o religioso1. Segundo ele, o que existe por trás do universo se assemelha mais a uma mente que a qualquer outra coisa conhecida. Ou seja, é algo consciente e dotado de objetivos e preferências. De acordo com essa visão, esse ser criou o universo. Alguns dos seus desígnios são ocultos, enquanto outros são bastante claros: produzir criaturas semelhantes a si mesmo — quero dizer, semelhantes na medida em possuem mentes. Por favor, não pensem que um destes pontos de vista era sustentado há muito tempo e aos poucos foi cedendo lugar ao outro. Onde quer que tenha havido homens pensantes, os dois pontos de vista sempre apareceram de uma forma ou de outra. Notem também que, para saber qual deles é o correto, não podemos apelar à ciência no sentido comum dessa palavra. A ciência funciona a partir da experiência e observa como as coisas se comportam. Todo enunciado científico, por mais complicado que pareça à primeira vista, na verdade significa algo como "apontei o telescópio para tal parte do céu às 2h20min do dia 15 de janeiro e vi tal e tal fenómeno", ou "coloquei um pouco deste material num recipiente, aqueci-o a uma temperatura X e tal coisa aconteceu". Não pensem que eu esteja desmerecendo a ciência; estou apenas mostrando para que ela serve. Quanto mais sério for o homem de ciência, mais (no meu entender) ele concordará comigo quanto ao papel dela — papel, aliás, extremamente útil e necessário. Agora, perguntas como "Por que algo veio a existir?" e "Será que existe algo — algo de outra espécie — por trás das coisas que a ciência observa?" não são perguntas científicas. Se existe "algo por trás", ou ele há de manter-se totalmente desconhecido para o homem ou far-se-á revelar por outros meios. A ciência não pode dizer nem que esse ser existe nem que não existe, e os verdadeiros cientistas geralmente não fazem essas declarações. São quase sempre jornalistas e romancistas de sucesso que as produzem a partir de informações coletadas em manuais de ciência popular e assimiladas de maneira imperfeita. Afinal de contas, tudo não passa de uma questão de bom senso. Suponha que a ciência algum dia se tornasse completa, tendo o conhecimento total de cada mínimo detalhe do universo. Não é óbvio que perguntas como "Por que existe um universo?", "Por que ele continua existindo?" e "Qual o significado de sua existência?" continuariam intactas?

Deveríamos perder as esperanças, não fosse por um detalhe. No universo inteiro, existe uma coisa, e somente uma, que nós conhecemos melhor do que conheceríamos se contássemos somente com a observação externa. Essa coisa é o Ser Humano. Nós não nos limitamos a observar o ser humano, nós somos seres humanos. Nesse caso, podemos dizer que as informações que possuímos vêm "de dentro". Estamos a par do assunto. Por causa disto, sabemos que os seres humanos estão sujeitos a uma lei moral que não foi criada por eles, que não conseguem tirar do seu horizonte mesmo quando tentam e à qual sabem que devem obedecer. Alguém que estudasse o homem "de fora", da maneira como estudamos a eletricidade ou os repolhos, sem conhecer a nossa língua e, portanto, impossibilitado de obter conhecimento do nosso interior, não teria a mais vaga idéia da existência desta lei moral a partir da observação de nossos atos. Como poderia ter? Suas observações se resumiriam ao que fazemos, ao passo que essa lei diz respeito ao que deveríamos fazer. Do mesmo modo, se existe algo acima ou por trás dos fatos observados sobre as pedras ou sobre o clima, nós, estudando-os de fora, não temos a menor esperança de descobrir o que ele é.

A natureza da questão é a seguinte: queremos saber se o universo simplesmente é o que é, sem nenhuma razão especial, ou se existe por trás dele um poder que o produziu tal como o conhecemos. Uma vez que esse poder, se ele existe, não seria um dos fatos observados, mas a realidade que os produziu, a mera observação dos fenômenos não pode encontrá-lo. Existe apenas um caso no qual podemos saber se esse "algo mais" existe; a saber, o nosso caso. E, nesse caso, constatamos que existe. Ou examinemos a questão de outro ângulo. Se existisse um poder exterior que controlasse o universo, ele não poderia se revelar para nós como um dos fatos do próprio universo — da mesma forma que o arquiteto de uma casa não pode ser uma de suas escadas, paredes ou lareira. A única maneira pela qual podemos esperar que esta força se manifeste é dentro de nós mesmos, como uma influência ou voz de comando que tente nos levar a adotar uma determinada conduta. É justamente isso que descobrimos dentro de nós. Já não deveríamos ficar com a pulga atrás da orelha? No único caso em que podemos encontrar uma resposta, ela é positiva; nos outros, em que não há respostas, entendemos por que não podemos encontrá-las. Suponha que alguém me perguntasse, acerca de um homem de uniforme azul que passa de casa em casa depositando envelopes de papel em cada uma delas, por que, afinal, eu concluo que dentro dos envelopes existem cartas. Eu responderia: "Porque sempre que ele deixa envelopes parecidos na minha casa, dentro deles há uma carta para mim." Se o interlocutor objetasse: "Mas você nunca viu as cartas que supõe que as outras pessoas recebam", eu diria: "E claro que não, e nem quero vê-las, porque não foram endereçadas a mim. Eu imagino o conteúdo dos envelopes que não posso abrir pelo dos envelopes que posso." O mesmo se dá aqui. O único envelope que posso abrir é o Ser Humano. Quando o faço, e especialmente quando abro o Ser Humano chamado "Eu", descubro que não existo por mim mesmo, mas que vivo sob uma lei, que algo ou alguém quer que eu me comporte de determinada forma. E claro que não acho que, se pudesse entrar na existência de uma pedra ou de uma árvore, encontraria exatamente a mesma coisa, assim como não acho que as pessoas da minha rua recebam exatamente as mesmas cartas que eu. Devo concluir que a pedra, por exemplo, tem de obedecer à lei da gravidade — que, enquanto o missivista se limita a aconselhar-me a obedecer à lei da minha natureza, ele obriga a pedra a obedecer às leis de sua natureza pétrea. O que não consigo negar é que, em ambos os casos, existe, por assim dizer, esse missivista, um Poder por trás dos fatos, um Diretor, um Guia.

Não pense que estou indo mais rápido do que estou na realidade. Ainda não estou nem perto do Deus da teologia cristã. Tudo o que obtive até aqui é a evidência de Algo que dirige o universo e que se manifesta em mim como uma lei que me incita a praticar o certo e me faz sentir incomodado e responsável pelos meus erros. Segundo me parece, temos de supor que esse Algo é mais parecido com uma mente do que com qualquer outra coisa conhecida — porque, afinal de contas, a única outra coisa que conhecemos é a matéria, e ninguém jamais viu um pedaço de matéria dar instruções a alguém. E claro, porém, que não precisa ser muito parecido com uma mente, muito menos com uma pessoa. No próximo capítulo, vamos tentar descobrir mais a seu respeito. Apenas uma advertência. Houve muita conversa fajuta a respeito de Deus nos últimos cem anos, e não é isso que tenho a oferecer. Esqueça tudo o que ouviu.

NOTA: Para manter esta seção curta o suficiente para ir ao ar, só mencionei os pontos de vista materialista e religioso. Para completar o quadro, tenho de mencionar o ponto de vista intermediário entre os dois, a chamada filosofia da Força Vital, ou Evolução Criativa, ou Evolução Emergente, cuja exposição mais brilhante e arguta encontra-se nas obras de Bernard Shaw, ao passo que a mais profunda, nas de Bergson. Seus defensores dizem que as pequenas variações pelas quais a vida neste planeta "evoluiu" das formas mais simples à forma humana não ocorreram em virtude do acaso, mas sim pelo "esforço" e pela "intenção" de uma Força Vital. Quando fazem tais afirmações, devemos perguntar se, por Força Vital, essas pessoas entendem algo semelhante a uma mente ou não. Se for semelhante, "uma mente que traz a vida à existência e a conduz à perfeição" não é outra coisa senão Deus, e seu ponto de vista é idêntico ao religioso. Se não for semelhante, qual o sentido, então, de dizer que algo sem mente faça um "esforço" e tenha uma "intenção"? Este argumento me parece fatal para esse ponto de vista. Uma das razões pelas quais as pessoas julgam a Evolução Criativa tão atraente é que ela dá o consolo emocional da crença em Deus sem impor as consequências desagradáveis desta. Quando nos sentimos ótimos e o sol brilha lá fora, e não queremos acreditar que o universo inteiro se reduz a uma dança mecânica de átomos, é reconfortante pensar nessa gigantesca e misteriosa Força evoluindo pelos séculos e nos carregando em sua crista. Se, por outro lado, queremos fazer algo escuso, a Força Vital, que não passa de uma força cega, sem moral e sem discernimento, nunca vai nos atrapalhar como fazia o aborrecido Deus que nos foi ensinado quando éramos crianças. A Força Vital é como um deus domesticado. Você pode tirá-lo de dentro da caixa sempre que quiser, mas ele não vai incomodá-lo em ocasião alguma — todas as coisas boas da religião sem custo nenhum. Não será a Força Vital a maior invenção da fantasia humana que o mundo jamais viu?


1. Ver a Nota ao fim do capítulo.



LEWIS, C.S. Cristianismo Puro e Simples, livro I. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 21-37.






O Facebook está desenvolvendo uma tecnologia de reconhecimento facial tão precisa quanto o olho humano. Segundo a empresa, os testes realizados pela equipe do projeto chamado de DeepFace indicam que a taxa de exatidão de identificação é de 97,25%, enquanto a média de reconhecimento de rostos dos seres humanos é 97,5%.

A tecnologia primeiramente cria um modelo 3D da imagem e simula que o rosto esteja virado para frente. Então, são usadas técnicas de deep learning, que simulam uma rede neural para mapear a pessoa da foto. Com isso, é possível distinguir faces diferentes.

Para treinar o sistema, o Facebook analisou com 4,4 milhões de imagens de rostos de mais de 4 mil usuários da rede social.

Segundo o MIT Technology Review, a ideia inicial é ouvir as impressões da comunidade científica sobre o assunto para então participar do "IEEE Conference on Computer Vision and Pattern Recognition". A novidade ainda não tem previsão de lançamento na rede social. Vale notar que mais de 350 milhões de fotos são publicadas por dia no site.

O recurso de reconhecimento facial do Facebook não é novo, ele foi lançado em 2010 e desde então tenta identificar quais são as pessoas que estão na foto que você publicou.


Fonte: INFO

(Encontrado no fórum AntiNOM)