sexta-feira, 23 de maio de 2014


Escrito por Hélio Angotti Neto | 22 Maio 2014

Artigos - Cultura



O aborto pode ser chamado de infanticídio porque tanto o feto quanto o bebê recém-nascido não são pessoas.[1]

Se você é um médico ginecologista e não quer fazer abortamentos, é como um policial que não usa armas, e deve parar de exercer sua profissão.[2]

Num serviço público, de acordo com a norma técnica, o médico responsável é obrigado a fornecer o abortamento.[3]





Há uma guerra cultural pelo coração do Ocidente.[4] E, puxados para o centro dessa guerra, estão conceitos cardinais à vida humana e à forma como as pessoas enxergam o mundo e a si mesmas. Tais conceitos e formas de enxergar o mundo são tratados diretamente pela medicina e pelas profissões que lidam com a vida, a morte e o sofrimento humano, daí a importância das práticas de saúde neste cenário belicoso de nossos dias.


A medicina, obviamente, está no olho do furacão, justamente pelo fato de que ela pode ser instrumentalizada para outros fins que não a saúde do ser humano. Uma das formas mais insidiosas e perigosas dessa instrumentalização, sem dúvida nenhuma, é por meio da engenharia social movida pela troca de palavras e de idéias.

Trocando-se palavras, por exemplo, trocam-se conceitos e formas de pensamento, como já avisava George Orwell em sua distópica obra “1984”. Alguns conceitos importantes são suprimidos e outros, de menor importância, são elevados à categoria de princípios de grande destaque. Isso acontece no dia a dia quando somos submetidos à propaganda ou a campanhas diversas, porém quando tais “termos manipulados” lidam diretamente com nossa vida e com os parâmetros pelos quais julgamos tudo o que nos cerca, estamos mexendo perigosamente com as fundações de nossa civilização.

Os exemplos no início deste texto ilustram bem um processo que poderia ser chamado de engenharia social das palavras.

O simples expediente de chamar uma coisa pelo nome de outra pode gerar alterações profundas na percepção e na prática da medicina e na sociedade como um todo. O exemplo aqui citado é o da troca da palavra “infanticídio” (ou assassinato de bebês, se preferir) pelo termo “aborto pós-nascimento”.

Uma breve análise dessa troca, utilizando as ferramentas, descritas de forma sintética por Pascal Bernardin em seu livro Maquiavel Pedagogo [5], pode chocar pela obviedade de tal operação e pelos possíveis resultados, mesmo que não intencionados pelos autores de tal proposta.

A troca de nomes (infanticídio por aborto) foi proposta por membros da comunidade acadêmica, que discutem em círculo discreto há cerca de quarenta anos. Em suas discussões, recortes abstratos de conceitos importantes, amplos e, muitas vezes escorregadios, como o de “pessoa”, dão origem a uma série de conclusões que aos poucos ganham força e projeção em meios especializados.

Os fatos de que tais discussões são geradas e mantidas por autoridades acadêmicas, e que tais autoridades circulam em meio à comunidade de estudantes e pesquisadores com grande destaque, já bastam para que haja um forte contexto de convencimento acerca de sua razoabilidade. Adicione isto a um periódico bem qualificado internacionalmente - onde autores se esforçam para publicar e ganhar notoriedade científica - e o palco está armado.

Juntando isso ao eufemismo proposto, completa-se um importante conjunto de atividades com alto potencial de mudança social. O eufemismo de um ato extremamente repudiado pelas pessoas comunsconfigura ao mesmo tempo dois recursos psicológicos básicos na arte de convencer. Chamar uma coisa grotesca como matar um bebê por um nome de algo menos repudiado, como um abortamento, pode ser considerado um recurso do tipo “pé-na-porta”, onde o ouvinte corre o risco de aceitar 12 escutando meia dúzia. Por outro lado, o mero fato de se discutir infanticídio como algo racional já pode induzir o efeito “porta-na-cara”, no qual um repúdio imediato pode dessensibilizar aqueles menos perceptivos e gerar uma maior aceitação de atos aparentemente menos grotescos como o de abortar um feto.

Tudo isso ao lado de medidas governamentais - obrigando médicos a realizar o abortamento - pode levar inevitavelmente ao que se chama de dissonância cognitiva, onde há uma mudança de pensamento e de valores após realizar um ato do qual se discordava previamente, mudança esta causada pela racionalização e introjeção do comportamento realizado. O comportamento alterado pode ser simples como chamar uma coisa por outro nome, e complexo como executar um ato cirúrgico imoral.

Falar contra essa impostura psicológica e intelectual é tido por muitos como “fundamentalismo[6]”, mas há que se falar na “intolerância dos tolerantes”, que proíbem ao médico realizar uma simples, e essencial, objeção de consciência!

Resumindo: junte a Submissão à Autoridade, o Conformismo Grupal, o Pé-na-Porta, o Porta-na-Cara, a Dissonância Cognitiva, a Imposição Governamental e o reforço de tudo isso por “formadores de opinião”, e você obterá um forte elemento de guerra cultural em ação.

Quando os autores do artigo que propunha a troca do termo "infanticídio" por "abortamento pós-nascimento" foram respondidos por centenas de protestos e mensagens de repúdio, muitas vezes com alto teor de agressividade, o estrago já estava feito. Eles, de certa forma, se desculparam dizendo que tudo não passa de um debate de idéias. Mas quantos crimes horrendos e democídios não começaram com simples debates de idéia?

Em uma carta aberta na qual Giubilini e Minerva declaram-se surpresos pela ojeriza coletiva, e afirmam que “ninguém deveria ser hostilizado por um artigo acadêmico num tema controverso”, uma resposta muito óbvia é dada por um leitor: “Suponhamos que vocês argumentem acerca da morte de uma minoria étnica numa sociedade acometida pelo racismo, vocês esperariam aplausos?” [7] Outro ponto é a percepção direta e clara da postura hostil ao se defender a ausência de status moral de fetos e crianças, mesmo que tal defesa seja executada sob o manto de uma linguagem acadêmica.

O leite está derramado e incontáveis atos de manipulação semântica chegam aos nossos ouvidos a cada dia, trocando valores, camuflando intenções e propondo novas cosmovisões. O mínimo que se pode fazer é permitir um espaço para uma verdadeira altercação intelectual, onde tais venenos sutis possam se transformar em poderosas vacinas, e onde propostas agressivas com palavras suaves possam ser respondidas de forma clara e direta.

Com satisfação, encontro alguns desses espaços em atividade. Um exemplo é o próprio portal Mídia sem Máscara. Outro espaço para o debate franco e aberto de idéias e o oferecimento de um contraponto verdadeiro é a Vide Editorial, onde o esforço pessoal de responder a tais manipulações semânticas materializou-se no livro “A Morte da Medicina” [8]. Por fim, uma resposta acadêmica foi publicada recentemente [9].

Na sequência deste artigo, tratarei de outros elementos abordados de forma mais minuciosa no livro “Morte da Medicina” e expandirei a análise em outros temas contemporâneos da Bioética.


Notas:

[1] Cf. GIUBILINI A, MINERVA F. After-birth abortion: why should the Baby live? J Med Ethics 2013; 39:261-263.

[2] Cf. VATTIMO G. Nihilism and Emancipation. New York: Columbia University Press, 2004. SAVULESCU J. ConscientiousObjection in Medicine. Brittish Medical Journal 2006; 332: 294-7.

[3] PENITENTE LS. Aspectos Jurídicos, Sociais e Éticos do Aborto. Mirabilia Medicinae 2013; 1: 13-24. PENITENTE LS et. al. Debate sobre o Abortamento Voluntário. Mirabilia Medicinae 2013; 1: 25-39.

[4]Países que nasceram com a junção da filosofia grega, do direito romano e da religião judaica sob a ascensão do Cristianismo.

[5] BERNARDIN P. Maquiavel Pedagogo. Campinas (SP): Vide Editorial, 2012.

[6] JURKEWICZ RS. A sscolha sobre o corpo. Publicado no Jornal “Le Monde Diplomatique Brasil em 03 de fevereiro de 2010. Disponível em: <http://www.diplomatique.org.br/artiho.php?id=619>. Acessado em 19 mai. 2014.

[7]BRASSINGTON I. An Open Letter from Giubilini and Minerva. Journal of Medical Ethics Blog 2Mar 2012.

[8] Lançamento pela VIDE Editorial previsto para20 de Junho de 2014.

[9] ANGOTTI-NETO H. Abordagem crítica filosófica, científica e pragmática ao abortamento pós-nascimento. Revista Bioética 2014; 22(1): 57-65.



Hélio Angotti Neto é médico oftalmologista com graduação pela Universidade Federal do Espírito Santo e residência médica e doutorado em Ciências pela Universidade de São Paulo. Coordena o curso de medicina do Centro Universitário do Espírito Santo (UNESC-ES) e é o diretor da seção especializada em humanidades médicas da revista Mirabilia. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética, do Conselho Brasileiro de Oftalmologia, do Comitê de Ética em Pesquisa do UNESC, do Center for Bioethics and Human Dignity, da Associação Brasileira de Educação Médica e do Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho. Coordena o SEFAM (Seminário de Filosofia Aplicada à Medicina).


Fonte: Mídia Sem Máscara

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