sexta-feira, 22 de agosto de 2014




Santo Antão

O Santo da Renúncia


parte 1


Durante mil e quinhentos anos, as "tentações de Santo Antão" cativaram a imaginação de artistas e escritores. A impressão que deixaram pode ser acompanhada desde os mestres  da mais velha escola bizantina até Cézanne e Félicien Rops, dos mais remotos cronistas até Flaubert e Anatole France. Atanásio, o famoso bispo de Alexandria, conheceu pessoalmente Antão, o homem cuja vida e cujo caráter iriam manifestar tamanhos poderes infalíveis de fascinação. Na sua Vita Sancti Antonii, o bispo deixou uma descrição, em primeira mão, da personalidade e da estranha vida de Antão, que se estendeu por mais de cem anos. Além de ser a primeira narrativa da vida de qualquer santo, esta Vita é também a primeira biografia não limitada a simples cópia de acontecimentos exteriores, mas lança uma vista para o interior dos conflitos íntimos de seu biografado. Pode ser chamada a primeira biografia psicológica da literatura mundial. O autor foi um piedoso bispo do quarto século, sem qualquer espécie de dúvida religiosa a perturbá-lo. Lendas e milagres, visões sagradas e aparições do demônio eram para ele fatos tão reais como nomes de pessoas e lugares, ou datas. Seu herói foi o primeiro eremita, cujo ambiente e modo de vida são estranhos e por vezes incompreensíveis aos leitores modernos. Todavia, o conflito básico na vida deste homem foi um conflito eternamente humano, que não pode ser evitado por quem quer que lute por obedecer ao chamado de sua natureza mais elevada: o conflito entre a tentação carnal e a contenção espiritual.

Antão nasceu cerca do ano 251, na aldeiazinha de Coma, hoje chamada Quemã-el-Arune, na província de Beni Suef, no Alto Egito. Era filho de ricos coptas, cujas terras de plantio, de cerca de 130 acres, estavam localizadas às margens do Nilo, na província de Faium. Então, como hoje, era o Egito uma terra sem chuva. No alto, o céu ostentava-se eternamente azul e sereno. Havia apenas uma fonte de água, o Nilo. A prosperidade ou a penúria dos lavradores dependiam dos caprichos misteriosos do "grande rio". No inverno, na primavera e no verão, o Nilo era uma lúgubre e suja extensão de água, deslizando preguiçosamente ao longo de suas margens áridas e arenosas. Somente o esforço mais persistente e um imenso gasto de trabalho árduo podiam arrancar dele aquele mínimo de água que o homem, o animal e o solo requerem.

Dia após dia, o jovem Antão, com uma junta de búfalos, ocupava-se na tarefa de conservar em movimento a roda-dágua de seu pai. Era um típico felá jovem, de forte constituição e pele bronzeada, maçãs do rosto salientes, grandes olhos negros e densas pestanas — de rosto e estatura notáveis, resumo e repetição de seus antepassados. Ali ficava ele, encarapitado numa estranha espécie de assento, vigiando a procissão infindável, que descia água adentro e voltava a subir à margem, de potes de barro vazios e cheios, ligados aos raios salientes de uma roda vertical, montada sobre os dentes de uma outra horizontal, que os búfalos empurravam, vagarosa e constantemente, girando, girando, girando.


Enquanto não chegasse o outono, essa faina não podia ser interrompida. Depois, bem de súbito, o rio plácido e preguiçoso inchava e principiava a fluir com grande rapidez. Sua cor cinzenta passava a vermelha e verde. Continuava a subir; inundava suas margens; transformava a região, até as colinas na orla do deserto, num vastíssimo lago.

Finalmente, as águas baixavam e chegava a época do ano em que Antão devia acompanhar seu pai. Com as mãos transbordantes de sementes, semeava o grão na lama fértil deixada pelas águas do rio. Dentro em pouco, as margens do Nilo mudavam-se num brilhante campo de trigo ondulante. Uma ou duas colheitas, muitas vezes, graças à abundante riqueza do rio, tantas como seis colheitas, seguiam-se uma à outra, em rápida sucessão. Era o tempo da fartura e da abundância, em que o pai de Antão podia acrescentar novas somas às suas economias dos anos anteriores.

Desde a sua mais tenra infância, Antão conhecia o Nilo como a mesma e grande experiência central que fora para seus antepassados. Essa experiência lhe ensinava que os labores de todos os homens nada são em si mesmos. Que aquilo que o homem necessita, seu pão quotidiano e seus bens terrenos, é-lhe dado como graça. Para Antão e sua família, o doador dessa graça era o Nilo, mas no Nilo havia Deus que governava e expressava Sua vontade.

[...]

No Nilo, Deus se manifestava em Sua onipotência, a onipotência da natureza; e na igrejinha da vila de Coma, o padre proclamava Seus divinos mandamentos. O pai de Antão vivia em estrita adesão àqueles mandamentos e transmitia ao filho o espírito de sua própria piedade inata e incondicional. A simplicidade e naturalidade de sua fé, características de todos os felás, estavam profundamente arraigadas na natureza peculiar da cristandade copta.


[...]

Para Antão, a doutrina de Cristo era um lei que não podia ser posta em discussão. Seu pai estivera sempre atento para conservar afastada dele qualquer influência externa que pudesse perturbar-lhe a pureza da fé. Enquanto outros meninos brincavam, jogavam e divertiam-se a valer, Antão ficava em casa e passava suas horas livres em piedosas orações.

Para o espírito do velho lavrador, a pior ameaça à salvação de seu filho era o saber mundano, tal como era cultivado nas escolas gregas. [...] Uma vez caído no encanto daqueles símbolos mágicos, estava-se fadado a ser presa do ceticismo do pensamento grego, bem como da exploração por parte dos gregos senhores de terras. De modo que o jovem Antão não foi mandado à escola e cresceu analfabeto. Sua bagagem espiritual e mental ficara limitada ao que o  padre da igreja local tinha a oferecer nas suas leituras da Bíblia copta e nas piedosas lições que nela baseava.

À medida que o menino crescia e se aproximava da varonilidade, as belas moças felás da vizinhança começaram a atrair-lhe a atenção. Muitas vezes aquelas moças passavam por ali, caminhando através dos campos, altivas na graça de seu passo elástico, balançando habilmente os potes de barro na cabeça, os corpetes em forma de blusas soltas revelando naturalmente o contorno firme de seus seios cor de bronze. Antão parava e ficava a contemplá-las, como se fascinado pela beleza delas. Os outros rapazes podiam acompanhar as moças, podiam falar-lhes e gozar-lhes da companhia, mas Antão, o filho obediente, cumprindo as estritas ordens de seu pai, voltava para casa e rezava até poder libertar seu pensamento das sedutoras donzelas e concentrar-se de novo apenas em Deus.

Estava Antão com quase vinte anos quando, em rápida sucessão, morreram-lhe o pai e a mãe. Achava-se agora só, com exceção de uma irmã mais moça, ainda menor. Herdara campos, pastos e rebanhos e fazia o melhor que podia para dirigir a riqueza de seu pai que se tornara agora sua. Econômica e honestamente juntava dracma a dracma, ávido de aumentar as somas que seu pai lhe havia deixado. Passava seus dias em atos de piedade e retidão, justamente como antes da morte de seu pai, pois era um bom filho e vivia de acordo com as lições de sua primitiva educação. E quando este moço,privado da guia paterna, ouvia na igreja as lições tiradas da Bíblia, tomava-as como as ordens de um pai cuja autoridade era mesmo maior que a do outro que havia morrido. Como filho obediente, esforçava-se cada vez com mais zelo, cada vez com mais rigor, por viver fielmente de acordo com os mandamentos de seu Pai Celestial. Nos anos de sua infância, esforçara-se por agradar a seu pai da terra, mas agora via cada vez mais claramente que era seu dever tornar-se digno da graça de Deus, lutando por atingir o mais alto grau de perfeição interior.

 Um domingo de manhã, cerca de seis meses depois da morte de seus pais, estava Antão sentado no banco da família, na igreja da aldeia. Ali estava ele, belo e esbelto jovem, filho obediente, escutando atentamente as ordens de seu Pai. Aeus olhos estavam presos aos lábios do padre. Os ouvidos tão atentos que nem uma palavra sequer poderia escapar-lhes. O padre lia o Evangelho segundo são Mateus: "E eis que alguém se aproximou e Lhe disse: 'Mestre, que coisa boa farei para ter a vida eterna?' E Jesus respondeu-lhe: "Se  queres entrar na Vida, guarda os mandamentos." Disse-Lhe o jovem: "Tudo isso tenho guardado; que me falta ainda?" Disse-lhe Jesus: "Se queres ser perfeito, vai vender tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro nos céus; depois vem seguir-Me.'"*

Antão levantou-se, deixou a igreja, foi e vendeu sua terra e seus rebanhos, e deu o dinheiro aos pobres da aldeia. Pois sentiu que as palavras que Cristo dissera ao moço rico da Galiléia aplicavam-se a ele, o jovem rico de Coma.

Não sabemos o que aconteceu ao moço rico e se ele executou as palavras que o Senhor lhe dissera, 250 anos antes da época de Antão. Mas isto sabemos: Antão, o rico jovem de Coma, que viveu no terceiro século depois Cristo, cumpriu a exortação dirigida tanto tempo antes ao jovem da Galiléia. Decidiu viver sua vida de acordo com o preceito de Cristo e é para nós o exemplo mais antigo e mais conhecido do que acontece a um homem que segue o pedido do Evangelho com todas as suas conseqüências.

Da noite para o dia, o rico jovem tornara-se pobre. Seu pão de todo dia estava mais garantido. Enfrentava agora todas as privações da pobreza.

No domingo seguinte, era um jovem mortificado, vestido com os farrapos da pobreza, quem se sentava na igreja aldeã de Coma e ouvia o padre ler o seguinte trecho do Sermão da Montanha: "Não andeis, pois, ansiosos pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã a si mesmo trará seu cuidado; ao dia bastam os seus próprios males."

E mais uma vez Antão sentiu que as palavras se dirigiam a ele. Levou sua irmãpara um asilo de donzelas e tomou seu caminho para alcançar a perfeita solidão, onde não há necessidade de pensar nas coisas do amanhã.

A decisão de Antão significava completo rompimento com sua antiga vida. Para levá-la a efeito, necessitava do conselho de um homem de sabedoria e experiência. O padre da aldeia não poderia auxiliá-lo. Era um homem piedoso e vivia sua vida de acordo com a letra da lei, mas ao mesmo tempo, como era costume na Igreja Copta, era proprietário de terras e de outros bens terrenos e tinha mulher e filhos. Sua voz recitava o mandamento ao Senhor, mas não sabia ele como poderia o conselho nele contido ser traduzido em atos práticos. Havia, todavia, naquela época, certo número de cristãos piedosos, que viviam no Egito, verdadeiros "homens retos", forçados a fugir às perseguições do imperador romano Décio, e que agora viviam para sua fé numa reclusão sossegada. Um destes homens tinha uma choupanazinha não longe dos limites de Coma e foi a ele que Antão procurou, para guiá-lo no dilema em que se achava.

Encontrou m ancião, envolto numa capa de pêlo de camelo, que o abrigava em lugar da camisa que os lavradores coptas geralmente usavam. Possuía apenas uma dura esteira, sobre a qual dormia, e ganhava miserável paga, tecendo esteiras e cestos. Dele aprendeu Antão como opor-se às tentações mundanas, com a força da oração e do trabalho, como dominar os apetites sensuais, pelo jejum e pela mortificação; aprendeu quão importante era que seus alimentos lhe proporcionassem apenas meri sustento e que deveriam consistir em nada mais do que pão e água e algumas tâmaras. Antes de deixar o velho eremita, Antão aprendeu com ele a tecer esteiras e cestos de folhas de palmeira.

Todas estas coisas, porém, apenas diziam respeito, por assim dizer, às exterioridades do ascetismo. O caminho interior para o objetivo foi apontado a Antão pela natureza, a natureza característica do Egito. Quando ainda criança, já lhe haviam falado da onipotência de Deus, e que agora, no começo do seu noviciado ascético, mostrava-lhe o caminho que o afastaria do mundo dos homens para o mundo da absoluta solidão.

Na sua simples grandeza, a paisagem do Egito jazia diante de Antão como uma reprodução admirável  do súbito rompimento que ele estava contemplando. Ao longo das margens do Nilo estendia-se a fértil província de Faium, funda e verde extensão de pastos e campos, símbolo de vida e de abundância. Depois, subitamente, não muito distante dos limites da aldeia de Coma, toda aquela exuberância dava lugar a uma aridez inabitável, onde a própria natureza parecia ter-se tornado ascética. Não era isto precisamente a espécie de abrupta mudança que o Evangelho exigia?

Envolto numa capa de pêlo de camelo, despojado até mesmo da menor trouxa de bens terrenos, Antão adentrou-se no deserto. Encontrou um sarçal e escolheu-o para seu futuro abrigo, embora parecesse mais adequado como caverna de animais errantes do deserto, do que a morada de um ser humano. Em seguida, pensou afinal que distante de todas as tentações mundanas, libertado de todos os cuidados referentes às coisas do mundo, poderia começar sua vida de devoção imperturbável. Mas esta abrupta mudança da abundância da vida para a esterilidade e a solidão mostrou ser mais um problema para o moço egípcio do que para a paisagem egípcia. Na natureza, a vegetação luxuriante transformava-se abruptamente em aridez irremediável, contudo, eram coisas distintas e uma nada sabia da outra. Antão, todavia, tinha de passar de uma para outra, da abundância à esterilidade, da vida à solidão; e, embora não carregasse consigo bens terrenos de qualquer espécie, estava contudo carregando, inconscientemente, a bagagem das recordações de tudo quanto deixara para trás.

Mal começara a acostumar-se à sua nova vida quando, com horren da malícia, seu invisível pacote pôs-se a desempacotar, por si mesmo, os indignos despojos que continha: ponto por ponto sua vida inteira, a vida que ele tinha abandonado, o mundo a que havia renunciado. Via de novo seus campos cultivados e seu gado pastando, e teve saudade deles e sentiu quanto significavam para ele. Via o contorno firme dos seios cor de bronze das belas raparigas felás. Pensava freqüentemente no dinheiro que recebera em paga de sua terra, o dinheiro que dera aos pobres. E de novo os algarismos, que ele recordava até ao último vintém, voltavam marchando pela sua mente, somando-se até um perfeito total. Fazia o que o velho "homem reto" lhe havi aconselhado que fizesse: empregava todos os seus esforços em concentrar-se na oração e buscava também refúgio no trabalho físico de tecer esteiras. Mas cada dia de sua vida solitária aumentava o poder de sua memória. Como seu perverso propósito fosse perturbar-lhe o trabalho e a devoção, começou a empregar toda espécie de ardis imaginosos: mostrava-lhe seus campos perdidos, produzindo cem vezes mais frutos, seu gado perdido aumentando em proporções de grandes manadas.

Mas Antão replicava a isso rezando com mais fervor ainda, trabalhando ainda mais duramente. Tornou-se mais rigoroso em seu jejum, mais sem piedade na sua autopunição. Os pensamentos inimigos tinham que ser expulsos pela oração, pelo trabalho, pelo jejum, pela flagelação. Então uma noite, quando estava quase certo de que havia alcançado êxito finalmente, ao erguer a vista depois de rezar, viu diante de si uma moça. Carregava na cabeça um pote d'água e sua blusa estava aberta, mostrando-lhe o pescoço e o seio. Era uma das raparigas felás a quem vira muitas vezes passar pelos campos. A moça despojou-se de suas vestes e deitou-se por baixo do sarçal. Antão tentava não olhar, tentava buscar refúgio na oração. Mas a moça não desistia; passou a noite inteira a tentá-lo com todas as espécies de gestos lascivos. Ele, porém, conservava os olhos voltados para Deus, implorando-Lhe que viesse em seu socorro. Por meio das preces mais ardentes, resistiu à tentação. Quando por fim surgiu a aurora, a moça, como uma aparição, havia desaparecido no crepúsculo da manhã.




*As citações bíblicas a partir da 7.a edição transcrevem-se da Bíblia Sagrada, segundo os originais hebraico e grego, tradução em língua portuguesa das Sociedades Bíblicas Unidas, Rio de Janeiro, 1947. (N. da E.)


FÜLÖP-MILLER, René. Os santos que abalaram o mundo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004, pp. 29-35.


CONTINUAÇÃO: PARTE 2

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