Santo Antão
O Santo da Renúncia
parte 2
parte 2
Mas imediatamente outra figura apareceu em seu lugar, igualmente real e igualmente verdadeira, como se a que o havia tentado durante a noite pela sua beleza se houvesse transformado agora na sua asquerosa contraparte. Um negrinho de lábios grossos ali estava diante dele, inteiramente nu e destituído até mesmo do mais primitivo senso de vergonha, fitando-o com um olhar bestialmente degenerado. Parecia-se com um membro de uma daquelas tribos selvagens que viviam na floresta, ao longo da fronteira da Núbia, tribos profundamente desprezadas pelos egípcios, pela sua desenfreada sensualidade. Dois chifres adornavam-lhe a cabeça, sinal entre os negros da floresta do gozo da plena potência viril. A princípio, Antão teve medo daquela estranha figura, mas depois verificou, de súbito, que deveria ser o diabo e que ninguém mais senão o diabo estivera a tentá-lo a noite inteira, na forma da bela rapariga felá.
Quando a aparição notou que seu disfarce havia sido descoberto, revelou sua identidade, dizendo: "Sou o advogado da impureza e me chamam o espírito da fornicação. Quantos eu não atraí das veredas da castidade, com minhas tentações! A muitos iludi e muitos derrubei; contudo, agora, quando te ataquei, como a outros tenho atacado, não fui bastante forte."
Encorajado por esta confissão de fraqueza da parte do atacante e cheio de desdém, Antão exclamou, pleno de orgulho: "Bem desprezível és, pois tua mente é negra e tens a força de uma criança!" Desta forma foi o espírito negro vergonhosamente derrotado e desapareceu instantaneamente.
Graças à sua firme resolução, Antão havia conseguido vencer as tentações daquela noite. [...] Antão havia renunciado ao mundo, mas o demônio sabia como dar entrada em sua solidão. Descera sobre ele com tentações mundanas, justamente quando todos os esforços de Antão estavam concentrados em Deus e havia-se apoderado de suas recordações, perturbando-o com fantasias e visões falazes.
[...] Quer o homem resista às tentações de sua mais baixa natureza com o contorno e forma do demônio, quer pense a respeito delas em termos de abstrações éticas, ou as visualize como a erupção de desejos recalcados — permanece o fato de que existe um poder que interfere em todas as aspirações mais elevadas do homem, poder ao qual toda vida humana tem de se ajustar. Crença no demônio ou interpretações éticas e psicológicas são simplesmente maneiras diferentes de explicar um mesmo e único fenômeno.
[...]
Para Antão, o asceta, as coisas materiais do mundo tinham um demônio, e o demônio era verdadeiramente "o príncipe deste mundo". Para escapar à garra do demônio, primeiro que tudo tinha ele que tentar ultrapassar o limite do poder do demônio. Devia mudar-se do reino dos vivos para o reino dos mortos. Para atingir isto, decidiu trocar seu refúgio, sob o sarçal, por um túmulo, o abrigo da morte, totalmente isolado do mundo e dos vivos.
No Egito, o túmulo tinha significação muito muito maior do que tem em nossa civilização. A vida temporal do homem era, para o egípcio, uma simples peregrinação no caminho para a vida eterna. Um abrigo terrestre era apenas um repouso para o viajante, mas o túmulo era uma "mansão de eternidade". Isto explica por que os túmulos estavam designados a desempenhar papel tão preeminente na cena egípcia. Verdadeira cidade dos mortos, eram eles cavados na rocha da montanha que borda o deserto líbio. Tinham a dureza e a perenidade do granito e de sua majestática altitude olhavam para baixo com desdém, para a efêmera mesquinhez das habitações de adobe dos vivos.
Para os cristãos coptas, que mantinham o velho conceito egípcio da efemeridade da vida sobre a terra e de que a vida depois da morte era a consecução da verdadeira essência de todo ser, o túmulo retinha sua importância fora do comum. Isto era especialmente verdadeiro aos olhos de um asceta, cujos atos e pensamentos se concentravam na mortificação da carne e para o qual o túmulo era o pórtico para a vida eterna. Contudo, a idéia de que uma pessoa viva decidisse fazer de um túmulo sua morada é difícil de compreender, não apenas do ponto de vista moderno, mas era igualmente desconcertante para os contemporâneos de Antão.
[...]
Pesados blocos de granito isolavam as "mansões de eternidade" do mundo lá embaixo e, durante séculos, ninguém tinha ousado penetrar naqueles túmulos. Antão pôs-se a caminho de seu novo abrigo, levando consigo um piedoso amigo da aldeia. Este amigo iria fechar a entrada do túmulo depois que Antão nele entrasse, deixando apenas uma estreita brecha, através da qual de vez em quando passaria o simples essencial de pão e água, sem o qual o próprio Antão não poderia viver.
Antão entrou e achou-se numa ante-sala em forma de abóbada, cuja fraca iluminação devia-se a uma réstia de luz que vinha da entrada. As paredes estavam cobertas de relevos representando cenas de caçada e animais sagrados de longínqua antiguidade, a espécie de decoração com que os velhos egípcios costumavam adornar os lugares de repouso de seus mortos.
Dali um escuro corredor conduzia ao túmulo propriamente dito, embaixo. Antão foi apalpando o caminho, cuidadosamente, em meio das trevas. Mas tão logo atingira o fim do corredor e entrara na sala subterrânea a que ele conduzia, uma voz colérica elevou-se dentre as trevas, dizendo: "Que estás fazendo aqui no reino dos mortos? Como ousas fazer o que vivente algum jamais ousou?" Eram palavras humanas que a voz proferia, mas os sons eram ao mesmo tempo tênues e penetrantes e pareciam vir do reino dos espíritos.
Antão recuou, mas havia aprendido a lição de suas experiências anteriores e soube imediatamente que tudo aquilo era mais uma vez obra do demônio. Fora certamente o demônio que ordenara ao espírito de morto que voltasse ao lugar onde repousava seu corpo, a fim de impedir que Antão encontrasse qualquer paz no túmulo solitário. Mas Antão não desistiria de sua decisão de morar com os mortos. Começou a rezar. Ergueu a voz e rezou alto, ecoando as apalavras de devoção em redor dele nas trevas. Mas um eco de centenas e milhares de vozes respondia dentre a treva, tentando mergulhar-lhe a oração num alarido de blasfêmias. Sabia ele que fora o demônio quem ordenara a vinda daquele coro especial, lá do reino dos mortos! Era o demônio, de cujo domínio mundano fugira ele, que estava agora tentando interferir em seus piedosos propósitos, por meio daquelas vozes diabólicas.
Deus não concede vida fácil àqueles a quem escolheu.Experimenta-os, entregando-os às tentações do mal. Entregou Jó, o mais piedoso dos homens, e até mesmo Jesus, Seu unigênito filho, às mãos do tentador. O mesmo fazia agora dando ao demônio mão livre para tentar a firmeza de Seu piedoso filho de Coma.
Grandes complicações tinha Antão com o demônio. Quando começava a rezar, suas piedosas palavras eram abafadas pelo barulho de gritos fantasmais. O demônio, porém, tinha grandes complicações com Antão, pois ele não se deixava intimidar pela algazarra diabólica e continuava simplesmente a cumprir seus exercícios de devoção. Assim a luta continuava, por dias e semanas, por meses talvez, ou mesmo por anos. Não se pode dizer quanto tempo durava, pois no túmulo não há relógio para bater horas. Não há sol ou lua para se erguer ou se pôr. Não há tempo no túmulo.
Das profundezas de sua miséria, chamava Antão: "Ó meu Senhor, ajudai-me e iluminai-me!" Mas logo que pronunciava estas palavras, via em torno de si uma multidão de centenas de milhares de luzes sulfúreas e de cada luz ouvia também uma voz separada. De repente, parecia que as vozes fantasmais e as luzes sulfúreas se misturavam. As vozes bruxuleavam como fogos-fátuos e as luzes explodiam num canto espectral. "Escuta, Antão! Viemos iluminar-te!" Isto era seguido por uma explosão de gargalhadas diabólicas e por uma trovoada de aplausos selvagens. Mas não havia ali bocas que pudessem gargalhar, nem mãos que pudessem palmear. Gargalhadas e palmas vinham de nenhuma parte, daquele mesmo escuro nenhures que havia mandado as vozes e as luzes, o reino dos espíritos, com os quais o demônio havia enchido o túmulo.
Antão redobrava seu rigor ascético. Durante dias, não comia nem bebia. Por longos trechos de tempo, negava-se qualquer sono, pois sabia que somente uma concentração mais intensa de sua alma poderia ajudá-lo a triunfar das maquinações do demônio. Mas os ataques aumentavam de fúria. Dir-se-ia que o demônio sea limentava do estômago vazio de Antão, matava sua sede na garganta ressecada de Antão e encontrava estranho repouso nas noites insones de Antão.
Quando se tornou claro que os fantasmas e suas zombarias haviam fracassado, o diabo recorreu a métodos mais drásticos de ataque. Ordenou a suas coortes que se encarniçassem contra o corpo enfraquecido de Antão, que o torturassem, que lhe dessem pontapés, coices e lhe batessem até ser vencida sua paixão pela prece. Os espíritos obedeciam e lançavam-se contra Antão com tal fúria que ele perdia os sentidos, caindo inconscientemente no chão.
Por esta ocasião, o amigo de Antão chegou ao túmulo, trazendo-lhe nova provisão de pão e água, mas quando deu o sinal na entrada, não recebeu resposta. Empurrou a pesada rocha para um lado e entrou. Chamou de novo e, quando de novo o silêncio foi a resposta, dominou seu medo e foi descendo vagarosamente pelo escuro corredor até o quarto inferior. Depois de por muito tempo apalpar o caminho em redor, encontrou por fim o corpo caído de Antão. Arrastou o corpo inerte do túmulo e carregou-o nos ombros até a igreja da aldeia de Coma.
A notícia de que o filho de Coma mais temente a Deus tinha sido encontrado morto excitou a vila inteira e logo a igrejinha se encheu de uma multidão de aldeões enlutados e soluçantes, que desejavam ajudar o padre a entrerar o corpo de Antão, ou simplesmente contemplar-lhe a veneranda face pela última vez. Um grupo deles, conduzido pelo amigo de Antão, foi encarregado de fazer o velório do cadáver, durante a noite. Mas em meio da noite, quando todos aqueles bons homens, com exceção ao amigo de Antão, estavam profundamente adormecidos, aquele a quem estavam eles encarregados de velar, aquele a quem todos julgavam morto, ergueu-se de seu sono letárgico. Sentou-se, vendo seu amigo, acenou-lhe, chamando-o, e fez-lhe compreender que desejava ir embora. Sem uma palavra, saíram os dois cautelosamente, passando por cima dos vigilantes adormecidos e deixaram a igreja. Dentro em breve os dorminhocos acordaram e acharam o caixão vazio. Por esse tempo, Antão, apoiado no braço de seu amigo, estava a caminho de volta para o túmulo, onde tencionava prosseguir sua luta contra o demônio de novo.
CONTINUA... (parte 3)
FÜLÖP-MILLER, René. Os santos que abalaram o mundo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004, pp. 35-41.
Ler desde o início: parte 1
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