Santo Antão
O Santo da Renúncia
parte 3
Entrando no túmulo, gritou, desafiadoramente: "Aqui estou eu! Vê! Faze pior! Nada me separará jamais de Cristo, meu Senhor!" E depois começou a cantar as palavras do salmo: "Embora uma hoste acampasse contra mim, contudo meu coração nenhum medo sentiria."
Enraivecido pela desafiadora firmeza do obstinado homem de Deus, o diabo, com seu demoníaco poder, ordenou os animais de granito dos frisos das paredes que se vivificassem. Imediatamente o túmulo se encheu do furor de animais que rugiam, silvavam e bramiam. Para onde quer que Antão se voltasse, por toda parte em redor dele, havia bandos de lobos, leões selvagens, leopardos, ursos e touros. Serpentes venenosas enroscavam-se em suas pernas. Olhos vorazes faiscavam na treva. Bocas ávidas ameaçavam devorá-lo. Chifres pontudos estavam prontos a escorneá-lo. Aranhas gigantescas teciam suas teias para prendê-lo.
Mas Antão, cheio de firmeza, recusava-se a esse novíssimo meio de intimidação de seu adversário, pois via claramente que aquelas bestas selvagens não passavam de produtos de um capricho infernal. Portanto, exclamou com toda a coragem: "Se alguma força tivessem, bastaria ter vindo um de vocês. Mas o Senhor privou de vocês de força e dessa forma procuram amedrontar-me pelo número." E depois voltou-se para o próprio demônio e desafiou-o: "É um sinal de teu desespero haveres tomado a forma de animais selvagens. Olha para mim agora, a salvo dentro do baluarte de minha fé! Se realmente pensas que podes exercer teu poder sobre mim, não demores, bate!"
Então o diabo, na sua raiva imponente, ordenou a seus animais que arrancassem as paredes de granito do túmulo. Imediatamente obedeceram eles. Os leões e leopardos com suas poderosas patas, os ursos com sua força desajeitada, os touros com seus chifres, os lobos com seus dentes afiados, todos começaram a empurrar e puxar, a morder e roer, a cavar e esburacar, e as serpentes também ajudavam e os escorpiões e todos os animais rastejantes e coletantes do inferno, que o diabo havia convocado.
As paredes do túmulo começaram a tremer. Dentro em pouco, ruiriam e com elas o teto abobadado se desmoronaria. Mas então, repentinamente, em vez de abater-se, abriu-se! E um glorioso esplendor de luz radiante desceu das trevas do túmulo. E em qualquer parte onde aquele clarão chegasse, a treva tinha de ceder e com ela desapareciam os monstros gerados pelo demônio.
Antão compreendeu que a luz significava a presença do Salvador e perguntou: "Onde estais vós, Senhor meu Jesus? Por que não viestes mais cedo para ajudar-me?"
Uma voz que promanava da luz respondeu, dizendo: "Antão, eu estava junto de ti todo o tempo. Estava a teu lado e vi tua luta; e porque enfrentaste virilmente teu inimigo, sempre haverei de proteger-te."
Quando Antão olhou em redor, as paredes estavam de novo firmes no lugar e as bestas selvagens haviam voltado aos frisos esculpidos no rochedo.
[...] Quando finalmente deixou o túmulo, Antão estava com trinta e seis anos de idade e atrás de si jaziam dezesseis anos, que gastara unicamente na sua luta com o demônio.
No dia em que Cristo apareceu diante dele, numa visão de luz, assegurando-lhe Seu auxílio, Antão deixou o túmulo e saiu para o deserto. Seguiu o caminho que muitos grandes santos e profetas antes e depois dele tiveram de seguir, antes de poderem cumprir sua missão. Moisés, Elias, João Batista, o próprio Cristo, são Paulo, e muitos e muitos outros.
O objetivo de Antão era o solitário monte Pispir, no deserto. Cruzou o Nilo deixando para trás o deserto líbio, e penetrou no deserto da Arábia. A paisagem na sua extrema desolação era como um vasto túmulo da natureza. Uma grande extensão estéril e arenosa espraiava-se diante dele, manchada por esparsos e brunos cones de rocha nua. Havia vales petrificados como leitos de rios secaram, e os poucos vestígios de vida e vegetação neste deserto, os sicômoros, tamargueiras e palmeiras dessoradas tinham o aspecto de fantasmas, com seus galhos estendidos como a querer agarrar o ar ressequido. Um silêncio de morte estendia-se pesado sobre esta terra, raramente interrompido pelo bafo estrídulo do tórrido simum, que soprava o Saara. A luz do sol abrasador era tão intensa que a paisagem parecia vítrea e irreal. E depois, repentinamente, o zobaa, o elevado turbilhão de areia, levantaria em remoinhos pilares de poeira até ao céu o sol perderia sua força e o dia se transformaria em noite.
Com a maior dificuldade, Antão havia percorrido cerca de metade da distância através do deserto, quando se viu forçado a uma parada brusca. Diante dele, bem no meio da vastidão arenosa, jazia um imenso disco de prata. Fora sem dúvida a magia negra do demônio que largara aquela coisa cintilante ali na areia do deserto. Fracassara no seduzir Antão por meio de tentações voluptuosas; não obtivera êxito em atemorizá-lo com fantasmas, demônios e espíritos; de modo que agora tentara despertar nele a concupiscência das riquezas do mudo, esperando, assim, atingir seu alvo, que era desviá-lo da estrada direta para Deus.
Antão não podia ser enganado tão facilmente. "Oh!" exclamou ele. "Reconheço nisto obra tua. Mas deves saber que tua vontade não poderá prevalecer contra a minha!" Depois que pronunciou estas palavras, a prata desapareceu como se tivesse sido absorvida pela areia do deserto.
Poucas milhas adiante, estava Antão atravessando um barranco quando um enorme pedaço de ouro subitamente bloqueou-lhe o caminho. Seu brilho era tão intenso que até mesmo o ofuscante sol do deserto não podia igualá-lo. Antão parou apenas um instante, como enceguido pelo áureo esplendor, e sua mão, sobre a qual parecia ter perdido o domínio, estendeu-se ávida para o precioso metal. Mas justamente a tempo conteve-se, verificando que era de novo o demônio, procurando tentá-lo instilando nele o desejo cobiçoso pelos bens terrestres. Censurou-se e concentrou-se na oração, esperando libertar-se da visão áurea. Mas o pedaço de ouro, como se fosse mesmo uma coisa real, não se movia. Então valeu-se de um ardil próprio. Numa pronta decisão, pulou por cima do pedaço de ouro, como alguém que saltasse sobre um fogo flamejante, e, sem olhar para trás, correu, o mais depressa que podia, adiantando-se cada vez mais no deserto.
Depois de muitos dias, alcançou Antão, finalmente, o oásis de Meiamum, o moderno Der-el-Memum, último pouco nesta parte do deserto. Era aqui que ele tinha de desviar-se da estrada principal, na sua caminhada em direção ao monte Pispir. Antes de deixar o oásis, fez um trato com uma das pessoas que ali viviam. Duas vezes por ano, esse homem lhe levaria uma provisão de pão a seu abrigo no deserto. Antão prometeu pagar-lhe, em troca deste serviço, com o produto de suas esteiras de palma.
O monte Pispir, com suas cônicas formações rochosas, de um castanho-avermelhado, podia ser tomado como o arquétipo dessa vasta e desolada região. Depois de uma dificultosa subida, Antão atingiu por fim o platô, coroado pelas ruínas, roídas pelo tempo, de um forte abandonado. Suas paredes derruídas proporcionavam abrigo a chacais do deserto e a multidões de répteis inimigos da luz do sol. Antes de poder estabelecer-se ali dentro, teve Antão de limpar a abóbada subterrânea sob as ruínas do velho forte, que havia escolhido para sua nova morada. Pôs para fora ou matou toda persistente multidão de chacais, serpentes e escorpiões.
Mesmo depois, porém, não iria achar paz nem repouso. Olhava em redor e seu novo esconderijo e logo descobria que estava cercado de demônios, que entravam e saíam, andando por ali, atarefados, no antigo quartel sob as ruínas, como se aquele houvesse sido sempre a morada deles. Como conscienciosos mercenários do inferno, estavam sempre exercitando sua tarefa, mas sem dúvida, como humildes subordinados que eram, não tinham a seu dispor a arte e a habilidade de seu patrão. O próprio diabo, depois de dezesseis anos de esforços infrutíferos para seduzir Antão, havia-se transferido para vítimas mais prometedoras e deixara a seus escravos o encargo de conservar Antão ocupado e vigiá-lo continuamente, no receio de que ele pudesse aproveitar-se de um momento de descuido para lograr escapar-se para o lado de Deus. Isto explica por que os métodos agora empregados pelos adversários de Antão para atraí-lo, desviando-o de Deus, fossem completamente estúpidos e mesquinhos.
Quando Antão, emaciado e exausto, após severo jejum, agachava-se a um canto de seu quarto, um diabinho barrigudo aproximava-se dele, estalando os beiços, dando palmadinhas na pança cheia e prometendo ao eremita faminto todas as espécies imagináveis de festins luculianos. Quando suas vigílias se prolongavam até ao meio da noite, via-se subitamente cercado por uma multidão de diabinhos, fedendo a inferno, bocejando sonolentamente e oferecendo-se para arranjar-lhe uma cama confortável de penugem de aves, onde pudesse espichar-se e reconfortar-se por algum tempo. Quando ele estava com sede, traziam bandejas cheias das melhores bebidas e sentavam-se em alegre beberronia. Quando tentava concentrar-se em suas orações, faziam um infernal pandemônio e quando estava atarefado em tecer esteiras, arrebatavam-lhe das mãos o trabalho semi-acabado. Alguns procuravam lisonjeá-lo e prometiam-lhe glória e poder; outros ameaçavam-no; outros ainda ridicularizavam-no; e todos os servos do demônio tentavam, cada um a seu jeito, desviá-lo de sua vida de piedade e devoção.
Eram, para Antão, um aborrecimento contínuo, uma peste constante, e cada vez que os afugentava dali, voltavam com nova e diferente série de ardis estúpidos.
Mas Antão, a quem o grande inimigo, com suas poderosas armas de sensualidade e concupiscência das riquezas terrestres, não fora capaz de conquistar, não poderia por certo abalar-se pelas tentações em miniatura de toda aquela mesquinha miuçalha do inferno. Não consentia que o desviassem de qualquer uma de suas piedosas observâncias. E sempre, quando chegava a ocasião da entrega de nova provisão de pão pelo homem do oásis, as esteiras acabadas estavam ŕontas, esperando por ele, na cisterna.
Durante vinte anos, Antão passou seus dias na companhia daqueles turbulentos diabos, rejeitando-lhes as ofertas a tempo e a hora, rezando, jejuando e tecendo esteiras. E talvez ali houvesse ficado nas ruínas do monte Pispir, até o fim de seus dias, combatendo os diabinhos, dia após dia, se não houvesse ocorrido no mundo exterior alguma coisa que, de repente, veio ocasionar uma mudança em sua vida.
O homem que fora contratado para provê-lo de pão caiu doente e certa vez mandou em seu lugar um rapaz. Era um garoto bem esperto e a estranheza de sua missão despertou-lhe a curiosidade. Depois de haver posto o pão na cisterna, começou a observar o forte do deserto. De repente, ouviu um barulho que provinha de alguma parte por debaixo das ruínas, e quando caminhou naquela direção, seguiu-se uma explosão de vociferações injuriosas, dentre a qual podia claramente distinguir diferentes vozes. Isto o afligiu, pois não podia deixar de pensar que o eremita talvez estivesse sendo atacado por bandidos. De modo que continuou a olhar e afinal descobriu uma abertura, através da qual podia avistar o interior do quarto sob as ruínas. Com grande espanto seu, o eremita ali estava, sozinho.
Excitado por esta estranha experiência, o rapaz voltou a correr para o oásis e relatou tudo quanto tinha acontecido. No dia seguinte, um grupo de homens encaminhou-se para as ruínas. Também eles ouviram as vozes injuriosas; também eles olharam através da fresta e viram que o eremita estava sozinho. A história que contaram de volta levantou todo o Meiamum e logo, em conseqüência, a população inteira partiu em peregrinação ao monte Pispir para resolver o enigma.
Chamaram e bateram nas paredes, mas quando nenhuma resposta veio, decidiram forçar a entrada. Nesse momento o eremita saiu ao encontro deles, calmo e imperturbável, e, às suas impetuosas perguntas, respondeu, ainda profundamente envolto no seu caso com os demônios: "Não tenham receio! Se um homem tem conhecimento de seus meios, os diabos não lhe podem fazer dano."
Ouvindo esta calma menção aos diabos, os homens e as mulheres que o cercavam foram tomados de um acesso emotivo. Quando Antão notou que muitos recuavam amedrontados, confortou-os, dizendo: "Aqueles demônios estão apenas fanfarronando, com seus estúpidos ardis. Falam e ameaçam. Mas são apenas demônios menores e uma oração fervorosa basta para embaraçá-los".
Tendo assim falado, Antão deu as costas e regressou a seu quarto sob as ruínas. Mas a multidão, profundamente excitada, ao saber que o eremita do monte Pispir tinha conseguido vencer o eterno inimigo do homem, o diabo, desceu para o oásis e enviou uma caravana para espalhar a grande nova por todo o deserto. Dentro em pouco foi conhecido em todos os oásis de todas as partes do deserto, ao longo de todo o Nilo e por toda Faium, que havia um homem vivendo no monte Pispir, que havia vencido o demônio. Um santo! E ali chegavam, vindas através do deserto, de todas as direções, inumeráveis caravanas, cujo objetivo era o santo do monte Pispir. As escarpas do deserto e o vale de Meiamum dentro em breve se converteram num vasto acampamento para uma multidão de milhares de pessoas. Muitos tinham vindo por simples curiosidade, desejosos de ver com os próprios olhos o santo que havia dominado o demônio. Mas havia alguns também, torturados de preocupações e cuidados, que tinham vindo para receber o conforto e conselho de um homem a a quem a santidade dotara de uma sabedoria mais do que humana. Havia os aleijados e os cegos, que esperavam ser libertados de suas doenças pelo toque da mão de um santo. E finalmente as multidões daqueles que buscavam Deus e tinham vindo para ficar e aprender com Antão o segredo da vitória sobre o demônio.
Chegavam todos às ruínas e chamavam o santo, perguntando-lhe se podia ouvi-los e responder-lhes às perguntas. E como o próprio Senhor havia, em certa ocasião, cumprido Sua missão entre os homens, da mesma forma Antão, Seu discípulo e santo, teria de fazê-lo agora.
Perceberam os diabos das ruínas que seu tempo estava perdido, que Antão escaparia deles para sempre, por meio das boas obras que o aguardavam lá fora. Redobraram seus esforços, inventaram novos ardis e tentações, bloquearam a saída. Mas os quarenta anos que o Senhor lhes concedera para tentar e experimentar Seu santo estavam terminados. Enviou Seus anjos, em radioso esplendor, para as ruínas, e eles tomaram Antão, levando-o para o alto. Quando os diabos viram isto, tentaram evitá-lo. Mas os anjos disseram: "Se vocês conhecem alguma ação má praticada por este homem, falem, e nós o abandonaremos a vocês."
Desta forma, foram os diabos confundidos. Não podiam responder, e os anjos pegaram Antão e subiram com ele bem alto, sobre as ruínas, depositando-o depois delicadamente do lado de fora dos muros.
CONTINUA... (parte 4)
FÜLÖP-MILLER, René. Os santos que abalaram o mundo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004, pp. 42-41.
Ler desde o início: parte 1 / parte 2.
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