sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Gilbert Keith Chesterton






parte 2/2 (2 de 2)



Entre as capas do mesmo panfleto ateu eu vi a fé censurada por sua desunião ("Um pensa uma coisa, outro pensa outra.") e censurada também por sua união ("É a diferença de opinião que preserva o mundo de sucumbir."). Na mesma conversa um livre-pensador, amigo meu, censurava o cristianismo por desprezar os judeus, e depois ele mesmo o desprezava por ser judaico.

Eu desejava ser muito justo naquela época e desejo ser muito justo agora; e não concluí que o ataque contra o cristianismo era todo errado. Só concluí que se ele estava errado, estava de fato muito errado. Esses hostis horrores talvez pudessem ser juntados numa única coisa, mas essa coisa devia ser muito estranha e solitária. Há homens que são avarentos e também perdulários; mas eles são raros. Há homens que são sensuais e também ascéticos; mas eles são raros.

Mas se esse acúmulo de loucas contradições realmente existia, algo pacífico como um quacre e ao mesmo tempo sanguinolento, deslumbrante demais e surrado demais, austero e, no entanto, pendendo absurdamente para a volúpia dos olhos, o inimigo das mulheres e seu insensato refúgio, um solene pessimista e um parvo otimista, se essa perversidade existia, então havia nela algo totalmente supremo e único. Pois eu não descobri em meus professores racionalistas nenhuma explicação dessa excepcional corrupção.

O cristianismo (em termos teóricos) era aos olhos deles apenas um dos mitos e erros comuns dos mortais. E LES não me deram nenhuma chave dessa maldade distorcida e antinatural. Esse paradoxo do mal adquiria a estatura do sobrenatural. Era, de fato, tão sobrenatural como a infalibilidade do papa. Uma instituição histórica, que nunca deu certo, é realmente um milagre praticamente tão grande quanto uma instituição que não pode dar errado. A única explicação que imediatamente me ocorria era que o cristianismo não provinha do céu, mas do inferno. Realmente, se Jesus de Nazaré não era o Cristo, ele devia ter sido o anticristo.

Depois, numa hora de quietude, um estranho pensamento me ocorreu feito um raio. De repente me entrara na cabeça outra explicação. Suponhamos que ouvíssemos muita gente fazendo menções a um desconhecido. Suponhamos que ficássemos intrigados por ouvir alguns dizendo que ele era alto demais; outros, baixo demais. Alguns faziam objeções à sua obesidade; outroslamentavam a sua magreza. Alguns o achavam escuro demais; outros, louro demais.

Uma explicação (como já se admitiu) seria que ele fosse uma figura estranha. Mas há outra explicação. Ele poderia ser a figura certa. Homens exageradamente altos poderiam achá-lo baixo. Homens demasiado baixos poderiam achá-lo alto. Velhos machões a caminho da corpulência poderiam considerá-lo fisicamente mal fornido; velhos janotas a caminho da fraqueza poderiam sentir que ele se encorpara excedendo as linhas minuciosas da elegância. Talvez os suecos (que têm o cabelo amarelo como uma espiga de milho) o chamassem de pardo, ao passo que os negros o consideravam distintamente louro.

Talvez, em suma, essa coisa extraordinária seja realmente a coisa ordinária; pelo menos a coisa normal, o centro. Talvez, no fim das contas, o cristianismo fosse sadio e todos os seus críticos fossem loucos — de maneiras variadas.

Eu testei essa idéia perguntando-me se havia nalgum dos acusadores algo mórbido que pudesse explicar a acusação. Fiquei chocado ao descobrir que essa chave se encaixava na fechadura. Por exemplo, era certamente estranho que o mundo moderno acusasse o cristianismo simultaneamente de austeridade física e de pompa artística. Mas era também estranho, muito estranho, que o próprio mundo moderno combinasse um luxo físico extremo com uma extrema ausência de pompa artística.

O homem moderno achava as túnicas de Becket exageradamente ricas e suas refeições exageradamente pobres. Mas também é verdade que o homem moderno era de fato uma exceção histórica; homem nenhum antes jamais consumiu jantares tão elaborados vestindo roupas tão feias. O homem moderno achava a igreja simples demais exatamente onde a vida moderna era demasiado complexa; ele achava a igreja esplendorosa demais exatamente onde a vida moderna é demasiado esquálida.

O homem que não gostava dos simples jejuns e das festas era louco por ENTRÉES . O homem que tinha aversão a vestimentas usava calças esquisitas. E certamente, se havia nisso alguma insensatez qualquer, ela estava nas calças, não na túnica de caimento discreto. Se havia alguma insensatez qualquer, ela estava nas extravagantes ENTRÉES, não no pão e vinho.

Examinei todos os casos e descobri que a chave até agora se encaixava. O fato de Swinburne ter-se irritado com a infelicidade dos cristãos e depois mais ainda com a felicidade deles era fácil de explicar. Já não se tratava de uma complicação de enfermidades do cristianismo, mas de uma complicação de enfermidades de Swinburne. As limitações dos cristãos o aborreciam simplesmente porque ele era mais hedonista do que alguém sadio deveria ser. A fé cristã o aborrecia porque cie era mais pessimista do que alguém sadio deveria ser. Da mesma maneira os malthusianos atacavam por instinto o cristianismo, não porque haja nele algo de antimalthusiano, mas porque há algo anti-humano no malthusianismo.

Apesar de tudo, eu sentia que não podia ser realmente verdade que o cristianismo era simplesmente sensato e ocupava a posição intermediária. De fato havia nele um elemento de ênfase e até de delírio que justificava os secularistas em suas críticas superficiais. Talvez o cristianismo fosse prudente, e passei a convencer-me de que ele era prudente, mas não do ponto de vista meramente mundano. Ele não era temperado e respeitável. Seus violentos cruzados e dóceis santos poderiam compensar-se uns aos outros; todavia, os cruzados eram muito violentos e os santos muito dóceis, dóceis além de qualquer decência.

Ora. foi justamente nesse ponto da especulação que me lembrei dos meus pensamentos acerca do mártir e do suicida. Nessa questão sempre houvera a combinação de duas posições quase insanas que, no entanto, de algum modo eram equivalentes à sanidade. Esse caso era simplesmente mais uma contradição, e essa eu já descobrira que estava certa. Esse era exatamente um dos paradoxos nos quais os céticos encontraram o erro do credo; e nesse paradoxo eu constatava que o credo estava certo.

Por mais loucamente que os cristãos pudessem amar o mártir ou odiar o suicida, eles nunca sentiram essas paixões mais loucamente do que eu as sentira muito antes de sonhar com o cristianismo. Então a parte mais difícil e interessante do processo mental se abriu, e comecei a delinear vagamente essa idéia em meio aos enormes pensamentos da nossa teologia. A idéia era aquela que eu havia esboçado no tocante ao otimismo e o pessimismo de que não queremos um amálgama de ambos, mas ambos no ponto máximo de sua energia; amor e ira, os dois inflamados.

Aqui vou apenas delinear a idéia em relação à ética. Mas não preciso lembrar ao leitor que a idéia dessa combinação é de fato central na teologia ortodoxa. Pois a teologia ortodoxa tem insistido especialmente que Cristo não foi um ser separado de Deus e do homem, como um elfo, nem tampouco um ser meio humano e meio não humano, como um centauro, mas as duas coisas ao mesmo tempo e as duas coisas de modo pleno, verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Agora peço permissão para esboçar essa idéia como a descobri.

Todos os homens sensatos podem ver que a sensatez é uma espécie de equilíbrio; que alguém pode ser louco comendo demais, ou louco comendo de menos. Surgiram de fato alguns modernos com vagas versões do progresso e da evolução procurando destruir o MESON OU equilíbrio de Aristóteles. Parecem sugerir que temos de morrer à mingua gradativamente, ou então continuar consumindo refeições cada vez maiores todas as manhãs para todo o sempre.

Mas o grande truísmo do MESON permanece válido para todos os homens pensantes, e aqueles modernos não abalaram nenhum equilíbrio, a não ser o deles mesmos. Concedendo-se, porém, que todos temos de manter um equilíbrio, o verdadeiro interesse surge com a pergunta de como se pode mantê-lo. Esse foi o problema que o paganismo tentou resolver; esse foi o problema que, na minha opinião, o cristianismo resolveu e resolveu de um modo muito estranho.

O paganismo declarou que a virtude estava em equilíbrio; o cristianismo declarou que ela estava em conflito: a colisão de duas paixões aparentemente opostas. E óbvio que elas não eram realmente inconsistentes; mas eram de tal natureza que ficava difícil sustentá-las ao mesmo tempo. Sigamos por um momento a pista do mártir e do suicida; e vamos analisar o caso da coragem. Nenhuma qualidade jamais confundiu tanto os miolos de sábios meramente racionais, complicando-lhes as definições.

A coragem é quase uma contradição em termos. Significa um forte desejo de viver que toma a forma de uma disposição para morrer. "Quem perder a sua vida, salvá-la-á," não é um fragmento de misticismo para santos e heróis. É um fragmento de orientação para o dia-a-dia de navegantes e alpinistas. Poderia ser estampado no livro de orientações ou de exercícios para escaladores de montanhas. Nesse paradoxo está todo o princípio da coragem; mesmo da coragem totalmente terrena ou totalmente brutal. Um homem isolado pelo mar pode salvar a vida arriscando-a no precipício.

Ele só pode escapar da morte se for continuamente pisando a um centímetro dela. Um soldado cercado por inimigos, se quiser achar uma saída, precisa combinar um forte desejo de viver com uma estranha despreocupação com a morte. Ele não deve simplesmente agarrar-se à vida, pois então será covarde — e não escapará. Ele não deve simplesmente aguardar a morte, pois então será suicida — e não escapará. Ele deve buscar a vida num espírito de furiosa indiferença diante dela; deve desejar a vida como água e, no entanto, beber a morte como vinho.

Nenhum filósofo, imagino eu, jamais expressou esse enigma romântico com a necessária lucidez, e eu certamente não o fiz. Mas o cristianismo fez mais; ele demarcou seus limites nas terríveis sepulturas do suicida e do herói, mostrando a distância entre quem morre por amor à vida e quem morre por amor à morte. E depois disso sempre ostentou acima das lanças européias o estandarte do mistério da cavalaria: a coragem cristã, que é um desdém da morte; não a coragem chinesa, que é um desdém da vida.

E agora eu começava a achar que essa dúplice paixão era a chave cristã da ética em todos os pontos. Em todos os pontos o credo criava uma moderação a partir do choque silencioso de duas emoções tempestuosas. Tomemos, por exemplo, a questão da modéstia, do equilíbrio entre o mero orgulho e a mera depressão. O pagão médio, assim como o agnóstico médio, simplesmente diria que estava contente consigo mesmo, mas não insolentemente satisfeito; que havia muitas pessoas melhores e muitas piores do que ele; que seus méritos eram limitados, mas ele cuidaria de tê-los. Em resumo, ele caminharia de cabeça erguida, mas não necessariamente de nariz empinado. Essa é uma posição racional e digna de um homem, mas está aberta à objeção que vimos contra o compromisso entre o otimismo e o pessimismo — a "resignação" de Matthew Arnold. Sendo uma mistura de duas coisas, é uma diluição de ambas; nenhuma está presente em sua força plena e nenhuma contribui com sua cor total. Esse orgulho adequado não eleva o coração como som das trombetas; você não pode vestir-se de púrpura e dourado por ele.

Em contrapartida, essa suave modéstia nacionalista não purifica a alma com fogo, nem a deixa clara como cristal; ao contrário da humildade rigorosa e profunda, ela não transforma o homem numa criancinha, que pode sentar-se aos pés da relva. Ela não o faz olhar para o alto e ver maravilhas; pois Alice precisa ficar pequena se quiser ser Alice no País das Maravilhas. Assim, essa modéstia perde tanto a poesia de ser orgulhosa quanto a poesia de ser simples. O cristianismo buscou, por meio desse mesmo expediente estranho, salvar as duas coisas.

Ele separou as duas idéias e depois exagerou ambas. Num sentido, o homem devia sentir-se mais orgulhoso do que nunca; noutro ele devia ser mais humilde do que jamais fora. Na medida em que sou homem, sou a principal das criaturas. Na medida em que sou um homem, sou o principal dos pecadores. Toda a humildade que significara pessimismo, que significara assumir uma visão vaga ou mesquinha do próprio destino — tudo isso devia ser descartado.

Não devíamos mais dar ouvidos às lamúrias do Eclesiastes dizendo que a humanidade não tinha primazia alguma sobre os brutos, ou ao grito horrível de Homero dizendo que o homem era apenas o mais triste de todos os animais do campo. O homem era uma estátua de Deus caminhando pelo jardim. O homem tinha primazia sobre todos os brutos; o homem só era triste por não ser um animal, mas sim um deus falido.

Os gregos haviam falado de homens rastejando sobre a terra, como se agarrados a ela. Agora o homem devia pisar sobre a terra como se quisesse subjugá-la. O cristianismo, desse modo, alimentou um pensamento de dignidade do homem que somente poderia ser expresso em coroas raiadas como o sol e leques com plumagem de pavão. No entanto, ele podia ao mesmo tempo alimentar um pensamento sobre a abjeta pequenez do homem que só poderia ser expresso em jejuns e fantástica submissão, nas escuras cinzas de São Domingos e nas brancas neves de São Bernardo.

Quando alguém pensava em si MESMO, havia espaço e vazio suficientes para qualquer quantidade de sombria abnegação e amarga verdade. Ali o cavalheiro realista podia tomar todas as liberdades — desde que as tomasse consigo. Havia um playground aberto para o feliz pessimista.

Deixemos que ele diga o que quiser contra si, desde que não blasfeme contra o objetivo original de seu ser; deixemos que ele chame a si de louco, até mesmo de louco danado (embora isso seja calvinista); mas ele não deve dizer que os loucos não são dignos de salvação. Ele não deve dizer que um homem, na qualidade de homem, pode não ter valor.

Aqui, mais uma vez resumindo, o cristianismo superou a dificuldade de combinar furiosos opostos mediante a manutenção de ambos, cada uma com sua fúria. A Igreja foi positiva nos dois pontos. Não se pode fazer uma idéia pequena demais de si mesmo. Nem se pode fazer uma idéia grande demais da própria alma.

Tomemos outro caso: a complicada questão da caridade, que alguns idealistas altamente descaridosos parecem julgar muito simples. A caridade é um paradoxo, como a modéstia e a coragem. Mal formulada, a caridade certamente significa uma de duas coisas: perdoar atos imperdoáveis ou amar pessoas não amáveis. Mas se nos perguntarmos (como fizemos no caso do orgulho) o que um pagão sensato sentiria a respeito desse assunto, vamos provavelmente começar da base da questão.

Um pagão sensato diria que há algumas pessoas que se podem perdoar; e algumas que não se podem: um escravo que roubasse vinho poderia ser motivo de riso; um escravo que traísse seu benfeitor poderia ser morto e amaldiçoado mesmo depois de morto. Na medida em que o ato era perdoável, o homem era perdoável. Isso, mais uma vez, é racional, e até reconfortante; mas é uma diluição. Não deixa espaço para o puro horror perante uma injustiça, como aquele que é uma grande beleza no inocente. E não deixa espaço para a mera ternura pelos homens na qualidade de homens, como a que constitui todo o fascínio do caridoso. Como antes, o cristianismo entrou em cena. Entrou de maneira alarmante com uma espada e separou uma coisa da outra. Separou o crime do criminoso. Ao criminoso devíamos perdoar até setenta vezes sete. Ao crime não devíamos perdoar de modo algum. Não bastava que os escravos que roubassem vinho inspirassem em parte ira e em parte bondade. Nós devíamos nos irar muito mais com o furto do que antes, e, no entanto, devíamos ser muito mais bondosos com os ladrões do que antes. Havia espaço para a ira e para o amor sem limites. E quanto mais eu contemplava o cristianismo, tanto mais percebia que, embora ele houvesseestabelecido uma regra e uma ordem, o objetivo principal dessa ordem era permitir espaço para coisas boas sem limites.

A liberdade mental e emocional não é tão simples como parece. Na realidade ela exige um equilíbrio de leis e condições tão meticuloso como acontece com a liberdade social e política. O anarquista estético comum que se dispõe a sentir tudo livremente no fim se enreda num paradoxo que simplesmente o impede de sentir. Ele foge dos limites familiares para seguir a poesia. Mas, cessando de sentir os limites familiares, ele deixa de sentir a "Odisséia". Está livre de preconceitos nacionais e do patriotismo exterior. Mas estando fora do patriotismo, ele está fora de "Henrique V".

Esse tipo de literato está simplesmente fora de toda literatura: é mais prisioneiro do que qualquer fanático. Pois, se há um muro entre você e o mundo, faz pouca diferença você se descrever como alguém fechado dentro ou alguém fechado fora. O que queremos não é a universalidade que está fora dos sentimentos normais; queremos a universalidade que está dentro de todos os sentimentos normais. Ali está toda a diferença entre estar livre fora deles, como um homem está livre fora da prisão, e estar livre deles, como um homem se livra de uma cidade. Eu estou livre fora do Castelo de Windsor (isto é, não estou forçosamente detido lá dentro), mas de modo algum estou livre daquele prédio. Como pode o homem estar praticamente livre de belas emoções, conseguindo atirá-las num espaço definido sem ruptura ou injustiça? Essa foi a proeza desse paradoxo cristão das paixões paralelas. Concedido o primeiro dogma da guerra entre o divino e o diabólico, a revolta e a ruína do mundo, o seu otimismo e pessimismo, como poesia pura, puderam desprender-se feito cataratas.

São Francisco, elogiando todo o bem, pôde ser um otimista mais retumbante do que Walt Whitman. São Jerônimo, denunciando todo o mal, pôde pintar um mundo muito mais negro que Schopenhauer. As duas paixões estavam livres porque as duas eram mantidas dentro de seu espaço.

O otimista poderia despejar todo o louvor que quisesse sobre a bela música da marcha, as trombetas douradas e os purpúreos estandartes a caminho da batalha. Mas ele não deveria chamar a luta de desnecessária. O pessimista poderia desenhar com as mais negras tintas que escolhesse as repugnantes marchas ou as sangrentas feridas. Mas ele não deveria chamar a luta de desesperada.

O mesmo se aplicaria a todos os outros problemas morais, ao orgulho, ao protesto e à compaixão. Definindo sua doutrina principal, a Igreja não apenas manteve lado a lado coisas aparentemente inconsistentes, mas, o que é mais notável, permitiu que elas irrompessem numa espécie de violência artística que em outras circunstâncias seria possível apenas para anarquistas. A submissão humilde ficou mais dramática que a loucura.

O cristianismo histórico assumiu a estatura estranha de um COUP DE THEATRE da moralidade — coisas que estão para a virtude como os crimes de Nero estão para os vícios. Os espíritos de indignação e de caridade assumiram formas terríveis e atraentes, variando da fúria monástica que castigou como um cão o primeiro e maior dos plantagenetas, até a sublime compaixão de Santa Catarina, que, no matadouro oficial, beijou a cabeça sangrenta do criminoso.

A poesia podia ser encenada bem como composta. Esse estilo heróico e monumental na ética desapareceu inteiramente com a religião sobrenatural. Eles, sendo humildes, podiam exibir-se; mas nós somos orgulhosos demais para sermos proeminentes. Nossos professores de ética escrevem com argumentação racional em favor da reforma das prisões; mas não existe a probabilidade de vermos o sr. Cadbury, ou qualquer outro eminente filantropo, entrar no cárcere de Reading para abraçar o cadáver estrangulado antes de ele ser atirado na cal viva.

Nossos professores de ética escrevem com delicadeza contra o poder dos milionários; mas não existe a probabilidade de vermos o sr. Rockefeller, ou qualquer outro tirano moderno, publicamente chicoteado na Abadia de Westminster.

Assim, a dupla acusação dos secularistas, embora lançando apenas trevas e confusão sobre si mesmos, projeta uma luz real sobre a fé. E verdade que a Igreja histórica enfatizou ao mesmo tempo o celibato e a família, defendeu ferozmente ao mesmo tempo (se assim se pode dizer) que se deve ter filhos e que não se deve tê-los. Manteve as duas coisas lado a lado como duas cores fortes, vermelho e branco, como o vermelho e o branco no escudo de São Jorge. Sempre teve um ódio sadio pelo rosa. Ela odeia a combinação de duas cores, que é o fraco recurso dos filósofos. Ela odeia essa evolução do preto para o branco, que é o mesmo que um cinza sujo.

De fato. toda a teoria da Igreja sobre a virgindade poderia ser simbolizada na afirmação de que o branco é uma cor: não simplesmente a ausência de cor. Tudo aquilo em que estou insistindo aqui pode ser expresso dizendo-se que o cristianismo procurou, na maioria desses casos, manter as duas cores coexistindo, porém puras. Não se trata de uma mistura como o castanho ou o roxo; trata-se antes de algo como a seda jaspeada,15 pois a seda lustrada sempre forma ângulos retos, segundo o padrão da cruz.

Isso acontece, naturalmente, com as acusações contraditórias dos anticristãos sobre a submissão e a carnificina. Pois é verdade que Igreja pediu que alguns homens lutassem e que outros não lutassem; e é verdade que aqueles que lutaram comportaram-se como raios e aqueles que não lutaram, como estátuas. Tudo isso simplesmente significa que a Igreja preferiu usar seus super-homens e usar seus tolstoianos.

Deve haver algo de bom na vida da batalha, pois tantos homens bons sentiram prazer em ser soldados. Deve haver algo de bom na idéia da não-resistência, pois tantos homens bons parecem gostar de ser quacres. Tudo o que a Igreja fez (no que se refere a esse ponto) foi impedir que uma dessas coisas boas desbancasse a outra. Elas existiram lado a lado.

Os tolstoianos, tendo todos os escrúpulos de monges,simplesmente tornaram-se monges. Os quacres tornaram-se um clube em vez de uma seita. Os monges disseram tudo o que diz Tolstoi; despejaram lúcidas lamentações sobre a crueldade da batalha e a vaidade da vingança. Mas os tolstoianos não são suficientemente adequados para dirigir o mundo inteiro; e nas épocas de fé não lhes foi permitido dirigi-lo.

O mundo não foi privado da última investida de sir James Douglas ou do estandarte da Donzela Joana. E às vezes essa pura gentileza e essa pura ferocidade se encontraram e justificaram a sua junção; o paradoxo de todos os profetas se cumpriu, e, na alma do rei São Luís, o leão deitou-se com o cordeiro. Mas é preciso lembrar que o texto é interpretado com demasiada leviandade. Com freqüência se assegura, especialmente em nossas tendências tolstoianas, que quando o leão se deita com o cordeiro o leão torna-se semelhante ao cordeiro. Mas isso é brutal anexação e imperialismo da parte do cordeiro. Isso é simplesmente o cordeiro absorvendo o leão em vez de o leão comer o cordeiro.

O verdadeiro problema é o seguinte: Pode o leão deitar-se com o cordeiro e ainda reter sua regia ferocidade? Esse o problema que a Igreja enfrentou; esse é o milagre que ela conseguiu. Isso é o que chamei de adivinhar as excentricidades ocultas da vida. Isso é saber que o coração do homem está à esquerda e não no meio. Isso é saber não apenas que a Terra é redonda, mas também exatamente onde ela é achatada. A doutrina cristã detectou as esquisitices da vida. Ela não apenas descobriu a lei, mas previu as exceções.

Subestimam o cristianismo os que dizem que ele descobriu a misericórdia; qualquer um poderia descobrir a misericórdia. De fato todo o mundo o fez. Mas descobrir o plano para ser misericordioso e também severo — isso foi antecipar uma estranha necessidade da natureza humana. Pois ninguém quer ser perdoado por um pecado grande como se fosse um pecado pequeno.

Qualquer um poderia dizer que não deveríamos ser totalmente infelizes, nem totalmente felizes. Mas descobrir até que ponto alguém pode ser totalmente infeliz sem eliminar a possibilidade de ser totalmente feliz — isso foi uma descoberta na psicologia. Qualquer um poderia dizer: "Nem pavonear-se, nem rastejar;" e seria um limite. Mas dizer: "Aqui você pode pavonear-se e ali você pode rastejar" — isso foi uma emancipação.

Esse foi o grande feito envolvendo a ética cristã; a descoberta de um novo equilíbrio. O paganismo fora como um pilar de mármore, reto por sua proporção simétrica. O cristianismo foi como uma áspera e romântica rocha, que, embora oscile sobre o pedestal a um ligeiro toque, todavia, sendo que suas exageradas excrescências se equilibram entre si, ali está entronizada há mil anos.

Numa catedral gótica as colunas eram todas diferentes, mas todas necessárias. Cada suporte parecia acidental e fantástico;cada pilar era um contraforte. Assim também no cristianismo, aparentes acidentes se equilibravam. Becket usava um cilício sob suas vestes de ouro e púrpura, e há muito a dizer em defesa dessa combinação; pois Becket se beneficiava com o cilício enquanto as pessoas na rua se beneficiavam vendo o ouro e a púrpura. Trata-se no mínimo de um estilo melhor que o do milionário moderno, que por fora exibe o preto e o desbotado para os outros e esconde o ouro junto ao seu coração.

Mas o equilíbrio não estava sempre no corpo físico como no caso de Becket; o equilíbrio muitas vezes se distribuía por todo o corpo da cristandade. Pelo fato de um homem rezar e jejuar nas neves do norte, flores poderiam ser arremessadas em seus festivais nas cidades do sul; e pelo fato de fanáticos beberem água nas areias da Síria, outros homens ainda poderiam beber sidra nos pomares da Inglaterra. Isso é o que torna o cristianismo ao mesmo tempo muito mais intrigante e interessante do que o império pagão; exatamente como a catedral de Amiens não é melhor, mas é mais interessante do que o Partenon.

Se alguém quer uma prova moderna de tudo isso, que considere o curioso fato seguinte: sob o cristianismo, a Europa (embora continue sendo uma unidade) dividiu-se em nações individuais. O patriotismo é um exemplo perfeito desse deliberado equilíbrio de uma qualidade enfática contra outra. O instinto do império pagão teria dito: "Vocês todos serão cidadãos romanos e se tornarão semelhantes entre si; que os alemães sejam menos lentos e reverentes; que os franceses sejam menos experimentais e rápidos". Mas o instinto da Europa cristã diz: "Que os alemães permaneçam lentos e reverentes, para que os franceses possam, em maior segurança, ser rápidos e experimentais. Vamos criar um equilíbrio a partir desses excessos. O absurdo chamado Alemanha deverá corrigir a insensatez chamada França". Último e mais importante: é exatamente isso que explica o que é tão inexplicável para todos os críticos modernos da história do cristianismo. Refiro-me às monstruosas guerras sobre pequenos pontos de teologia, os terremotos de emoção envolvendo um gesto ou uma palavra. Era apenas uma questão de um centímetro; mas um centímetro é tudo quando você está equilibrando.

A Igreja não poderia se dar ao luxo de oscilar um milímetro em alguns pontos, se quisesse continuar seu grande e ousado experimento do equilíbrio irregular. Assim que se permitisse que uma idéia perdesse um pouco de sua força, alguma outra idéia ganharia força demais. O que o pastor cristão conduzia não era um rebanho de ovelhas, mas sim uma manada de touros e tigres, de terríveis ideais e vorazes doutrinas, cada uma delas forte o suficiente para transformar-se numa falsa religião e devastar o mundo.

Lembre-se de que a Igreja abraçou especificamente idéias perigosas; ela foi uma domadora de leões. A idéia do nascimento por meio do Espírito Santo, da morte de um ser divino, do perdão dos pecados ou do cumprimento das profecias — qualquer um pode ver que são idéias que precisam apenas de um toque para transformar-se em algo blasfemo ou feroz. Os artífices do Mediterrâneo deixaram que o menor elo se partisse, e o leão do pessimismo ancestral rompeu sua cadeia nas esquecidas florestas do norte. Dessas compensações teológicas devo falar mais adiante. Aqui basta observar que se algum pequeno erro fosse cometido na doutrina, enormes disparates poderiam ser cometidos na felicidade
humana.

Uma frase formulada erroneamente acerca da natureza do simbolismo teria quebrado todas as melhores estátuas da Europa. Um deslize nas definições poderia parar todas as danças; poderia secar todas as árvores de Natal ou quebrar todos os ovos de Páscoa. As doutrinas tinham de ser definidas dentro de rigorosos limites, até mesmo para que o homem pudesse desfrutar de liberdades humanas gerais. A Igreja precisou ser cuidadosa, se não por outro motivo para que o mundo pudesse ficar despreocupado.

Essa é a emocionante aventura da Ortodoxia. As pessoas adquiriram o tolo costume de falar de ortodoxia como algo pesado, enfadonho e seguro. Nunca houve nada tão perigoso ou tão estimulante como a ortodoxia. Ela foi a sensatez, e ser sensato é mais dramático que ser louco. Ela foi o equilíbrio de um homem por trás de cavalos em louca disparada, parecendo abaixar-se para este lado, depois para aquele, mas em cada atitude mantendo a graça de uma escultura e a precisão da aritmética.

A Igreja em seus primeiros dias correu violenta e velozmente com qualquer cavalo de batalha; no entanto, é totalmente anti-histórico dizer que ela apenas cometeu loucuras apegando-se a uma única idéia, como um fanatismo vulgar. Ela curvou-se para a esquerda e para a direita, na medida exata a fim de evitar enormes obstáculos. Num dado momento ela abandonou o enorme vulto do arianismo, apoiado por todos os poderes deste mundo para fazer o cristianismo mundano demais. No instante seguinte ela estava se curvando para evitar o orientalismo, que o teria espiritualizado demais.

A Igreja ortodoxa nunca tomou a rota fácil ou aceitou as convenções; a Igreja ortodoxa nunca foi respeitável. Teria sido mais fácil ter aceitado o poder terreno dos arianos. Teria sido mais fácil, durante o calvinista século XVII, cair no abismo infinito da predestinação. E fácil ser louco; é fácil ser herege. E sempre fácil deixar que cada época tenha a sua cabeça; o difícil é não perder a própria cabeça. E sempre fácil ser um modernista; assim como é fácil ser um snob. Cair em qualquer uma das ciladas explícitas de erro e exagero que um modismo depois de outro e uma seita depois de outra espalharam ao longo da trilha histórica do cristianismo — isso teria sido de fato simples.

É sempre simples cair; há um número infinito de ângulos para levar alguém à queda, e apenas um para mantê-lo de pé. Cair em qualquer um dos modismos, do agnosticismo à Ciência Cristã, teria de fato sido óbvio e sem graça. Mas evitá-los a todos tem sido uma estonteante aventura; e na minha visão a carruagem celestial voa esfuziante atravessando as épocas. Enquanto as monótonas heresias estão esparramadas e prostradas, a furiosa verdade cambaleia, mas segue de pé.



15 Seda tecida com um fio de uma cor na trama e um fio de outra cor na urdidura. Dependendo do ângulo do qual se olha, o tecido apresenta uma cor diferente e bem definida.




Chesterton, G.K. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, pp. 95-108.


FIM DA PARTE 2 (E FIM DO TEXTO!)


NOTA: O texto acima é a segunda e última  parte do capítulo VI, "Paradoxos do Cristianismo", do livro "Ortodoxia" do G.K. Chesterton. A tradução é a da ed. Mundo Cristão (não encontrei outras em pdf e nem o texto completo em site algum). Depois pretendo postar outras traduções, mesmo que precise eu mesmo fazer a transcrição.

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