sexta-feira, 19 de setembro de 2014


Harry Redner

Mestres Malignos

Gentile
Heidegger
Lukács
Wittgenstein

Filosofia e Política no Século XX


Tradução: Leonildo Trombela Júnior




Prefácio e Introdução: parte 1/2 (1 de 2)





After such knowledge, what forgiveness? Think now
History has many cunning passages, contrived corridors
And issues, deceives with whispering ambitions,
Guides us by vanities.
T. S. Elliot





Prefácio

“Como a concisão é a alma da inteligência, eu serei breve”, promete o prolixo Polônio. Neste livro eu também prometo ser breve. Mas a brevidade tem seus contratempos – os ‘Polônios’ da filosofia exigirão longas exposições e demonstrações de cada ponto que eu deliberadamente evitei. Para eles, eu apenas posso responder para buscarem em outras e muito mais longas obras se quiserem ‘mais material com menos arte’. Em particular, eu posso recomendar meu recém-publicado A New Science of Representation, que estabelece o pano de fundo tanto filosófico como histórico em relação a este trabalho. Lá eles também encontrarão algumas meticulosas apresentações de argumentos que podem ser apenas brevemente abordados aqui. Pelo menos isso deve convencer qualquer um que eu posso ser tão túrgido e entediante quanto o melhor deles.

Se eu perdi por meio da brevidade eu ganhei em perspicácia, então que seja assim. De qualquer forma, não foi possível prover uma abordagem completa de quatro filósofos com material tão abundante como é o caso dos mestres malignos, cuja extensão dos manuscritos, muitos deles agora impressos, ultrapassa as dezenas de milhares de páginas. Quem acredita que esta obra teria um título mais apropriado se ela se chamasse Mestres Malignados, mostrará com facilidade a existência de virtudes ocultas nesses autores que eu me esqueci de mencionar e da existência de muitos comentaristas indispensáveis ​​ que eu não li. Eu não faço nenhuma reivindicação de onisciência sobre nada disso. Eu simplesmente dou suporte ao peso das minhas críticas. Deixe que as vozes discordantes tentem fornecer o contrapeso para equilibrar estas críticas.

Entretanto, devo avisá-los antes de qualquer tentativa, que eu ainda não terminei com esse capítulo na história da filosofia. Pretendo publicar pelo menos mais um livro, talvez intitulado Mestres Benignos, pois também tenho minha lista de heróis para confrontar com aqueles que quase todos admiram. Alguém muito desanimado pelos prognósticos – em sua maioria negativos – contidos neste livro ficará mais animado com o conteúdo mais positivo que virá em seguida.

O que eu pretendo realizar com este livro ‘negativo’ é simplesmente poupar os outros – principalmente os jovens – de todo o doloroso esforço realizado ao tentar  descobrir um profundo sentido nas atraentemente fascinantes obras dos mestres malignos. Eu desperdicei, muito daqueles que deveriam ter sido os meus melhores anos, em esforços fúteis. Todavia, se a minha experiência, como condensada neste livro, salvar alguns outros de embarcar em similar empreitada, então talvez esses anos todos não foram tão desperdiçados no final das contas. Embora eu ache que este livro terá sua utilidade, eu não faço nenhuma reivindicação especial em favor dele, tampouco espero usá-lo para fazer pregação aos outros. Eu me vejo no conto de fadas de Hans Andersen, interpretando humildemente o papel do garoto que exclamou a todos que o rei estava nu. Aqueles que estão no séquito do rei – os prudentes Polônios da filosofia, aqueles que a mesma nuvem pode parecer tanto uma doninha quanto uma baleia – continuarão sem dúvida a ver o rei esplendidamente vestido. Eu posso apenas reiterar que há mais entre o céu e a terra do que se sonha em suas filosofias.



Introdução

“Um filósofo moderno que nunca experimentou o sentimento de estar sendo um charlatão, é uma mente tão rasa, que sua obra provavelmente nem merece ser lida”1 . Assim disse Leszek Kolakowski bem no começo de uma obra sobre filosofia moderna. O áspero comentário sem dúvida é verdadeiro, mas de algum modo ele não atinge o ponto central, pois ele conta com algo que não pode mais ser garantido: a possibilidade de que haja uma clara diferenciação entre os filósofos que valham a pena ler – presumidamente os gênios – daqueles que são meros charlatães. De fato, ele reforça que, qualquer filósofo moderno que nunca duvidou suficientemente de si mesmo para cogitar a possibilidade de ser um charlatão, é provável que ele mesmo seja um. Mas a maioria dos largamente lidos e aclamados filósofos modernos nunca tiveram essa dúvida acerca de si mesmos. Apesar disso, não se pode simplesmente rotulá-los de charlatães.

Gênio ou charlatão – os dois extremos opostos de uma avaliação romântica, derivada da esfera estética, onde é aplicada aos artistas – são termos que não se adequam bem para esses pensadores incomuns, que são os mais famosos filósofos do século XX. São necessários outros termos mais precisos para designar suas indubitáveis realizações e falhas. Eu cunhei a expressão “mestres malignos” para esse propósito, pois ela constata tanto que esses filósofos são de fato mestres, como também constata que suas respectivas influências são algumas vezes malignas e em outras até perniciosas. Assim é possível evitar as alternativas exclusivas de “gênio” ou “charlatão” e até mesmo o apego a clichês do tipo “gênio mau”.

Nesta obra eu foco em apenas quatro desses mestres malignos. Apesar de eles não serem os únicos que podem ser discutidos nesses termos – pois há outros candidatos como veremos – esses são os quatro filósofos mais representativos da filosofia do século XX desde a Primeira Guerra Mundial e, possivelmente, os mais importantes. Gentile, Lukács, Heidegger e Wittgenstein: listei-os em uma ordem aproximada de precedentes temporais, com Gentile sendo o mais velho e já estabelecido mesmo antes da guerra; Lukács em segundo, com suas primeiras publicações aparecendo logo após a guerra; Heidegger em terceiro, com apenas uma pequena publicação durante a guerra; e por fim Wittgenstein, com seu primeiro trabalho aparecendo após o fim da guerra. Como irei mostrar em breve, todos eles são pensadores cujos trabalhos foram fortemente influenciados pela [Primeira] guerra e pela revolucionária inquietação que logo se seguiu. Cada um deles eram filósofos revolucionários que romperam com a anterior forma de pensamento mais racional, inaugurando assim uma corrente oposta que se tornou um vasto movimento; movimento esse que é muito mais que uma escola filosófica. Além disso, eles são mestres do pensamento contemporâneo no sentido pleno: eles escreveram obras-primas, exerceram indiscutível maestria sobre muitos discípulos e num número maior ainda de seguidores. Também seus textos ainda são lidos ex cathedra como se fossem leis em quase todas as Cadeiras de Filosofia.

Para que não pareça outra coisa,  gostaria de sublinhar  desde  o início  deste esforço crítico, que não é minha intenção menosprezar ou malignar a maestria desses mestres. Eles são indubitavelmente mestres; mas como tentarei mostrar, são de um tipo muito peculiar de mestres, pouco compatíveis com os grandes mestres que os precederam, ou até mesmo seus professores. E assim como os grandes ditadores daquele tempo, a quem eles seguiram, não podem ser comparados aos grandes estadistas do passado, pois suas realizações e falhas, embora muito mais momentâneas, eram de uma ordem completamente diferente. Também as obras dos mestres malignos não podem ser colocadas ao lado das obras dos grandes filósofos. Falando sobre Mahler, Wittgenstein disse que “foi preciso uma combinação de raríssimos talentos para produzir uma música ruim”2. Pode-se, com muito mais justiça, replicar essa afirmação de volta e dizer que foi preciso uma combinação de raros talentos para produzir esse tipo de “filosofia ruim”. Com a mesma justiça pode se dizer o mesmo dos outros mestres malignos, exceto que suas filosofias não são “ruins” em termos ordinários. Certamente há muitas formas em que eles podem ser considerados inferiores em comparação aos grandes filósofos do passado, mas isso não faz com que suas filosofias sejam pares com as filosofias ruins do passado. É preciso um novo conceito de “ruindade” para descrever seus trabalhos, pois uma mera “filosofia ruim” não poderia ter o extraordinário impacto que a filosofia dos mestres malignos teve no século XX. Eu recorri ao termo “maligno” para expressar algo desse paradoxo.

O fato de que eles eram malignos, torna-se evidente quando é relembrado como todos eles estavam estreitamente relacionados com os movimentos totalitários de suas respectivas épocas e, na maior parte dos casos, também ligados aoslíderes totalitários, ou seja, os próprios ditadores. Gentile, o mais antigo dos mestres malignos a adquirir proeminência, proclamou-se o “filósofo do fascismo”, cuja teoria política foi expressa com seu então neologismo “totalitário”. Ele era pessoalmente próximo de Mussolini, a quem ele hiperbolicamente denominou l’Uomo, O Homem, e considerou-o como o agente escolhido da Providência para liderar a nação italiana. Gentile se manteve devoto a Mussolini até o fim.

Heidegger não era menos devoto a Hitler, cujo bigode ele aparou pelo menos até o fim da guerra. O que ele pensou de Hitler depois da guerra não se sabe, mas desde antes da guerra Heidegger tinha Hitler como a encarnação do Destino enviada para salvar a Alemanha e o Ocidente das garras do niilismo. Mesmo após a guerra, Heidegger continuou a acreditar na “verdade interior e [na] grandeza do Nacional Socialismo”3, movimento fundado por Hitler; portanto é duvidoso se Heidegger alguma vez virou as costas para Hitler. Em 1943, logo após a batalha de Stalingrado, ele declarou numa palestra sobre Heráclito que, “os alemães e apenas os alemães podem salvar o Ocidente”4. John van Buren, que colheu essa citação, prossegue afirmando que “ele [Heidegger] manteve algo dessa versão até sua entrevista em 1966 para o jornal Der Spiegel”5. Assim, apesar de sua  cuidadosamente encenada pretensão de reabilitação, ele jamais admitiu estar enganado ao apoiar Hitler. Heidegger continuou a crer que, na derrota de Hitler e da Alemanha, o Ocidente perdeu a chance da redenção e caiu irremediavelmente na sombria noite do niilismo onde “apenas um deus pode salvar”6.

Lukács também sempre acreditou no seu líder escolhido – Stálin – desde o início da sanguinária batalha pela sucessão após a morte de Lênin, até a morte do próprio Stálin. Quando o próprio Partido reverteu sua linha estalinista com as revelações de Kruschev no vigésimo congresso do partido comunista, Lukács andou junto com o partido, mas jamais abandonou completamente sua crença em Stálin. Como ele continuou a manter sua posição de que, mesmo o pior do socialismo é melhor do que o capitalismo tem de melhor, é improvável que ele abandonasse a fé naquilo que Stálin conquistou. Ao longo do tempo em que Stálin esteve no poder, Lukács serviu habilmente como o apologista oficial do regime; talvez o mais respeitado internacionalmente e também o que mais tinha créditos para falar as mentiras necessárias ao regime. A princípio, isso não poderá ser usado contra ele, pois ele fez as devidas reverências, ainda que isso não possa ser considerado, pois ele foi obrigado a enunciar tudo o que lhe foi dito. Atualmente, há evidências consideráveis ​​ de que ele realmente veio a acreditar em suas próprias mentiras em um ato complexo de duplo pensar em que ele foi um dos primeiros expoentes.

Wittgenstein parece claramente um homem estranho nessa linha de leais ao totalitarismo, pois em comparação aos demais, ele parece apenas flertar com o totalitarismo, diferente do total engajamento e do casamento consumado dos demais. No entanto, havia uma considerável relação de paixão com os dois polos da política. O pano de fundo dele o predispôs às conservadoras – e até reacionárias – causas da velha Viena, de modo que sua colega comunista em Cambridge, Fania Pascal, o viu como um “conservador dos velhos tempos do Império Austro-Húngaro”7. Na realidade, as visões culturais de Wittgenstein eram “conservadoras-revolucionárias”: ele adotou o pessimismo cultural de Spengler; teve tendências a um autoritarismo anti-intelectual na religião e na política e era antissemita – não com a mesma virulência dos nazistas, porém com maior força do que seu mentor para esse tipo de assunto: o judeu que se odiava, Otto Weininger.

Ao mesmo tempo em que Fania Pascal fazia essa rotulação de Wittgenstein, ela ensinava russo a ele e a um amigo, para que assim ambos pudessem emigrar para a União Soviética, país ao qual ele era simpatizante e se sentia atraído por razões típicas de um “companheiro de viagem”. Ele declarou várias vezes na década de 1930 para discípulos e amigos: “Eu sou um comunista de coração”; Wittgenstein também nunca deixou de evidenciar seu considerável entendimento sobre o que Stálin ‘tinha de fazer’ mesmo após uma visita à Rússia em 1935, no auge da ‘limpeza’ que Stálin realizava; E ele continuou a nutrir planos de se estabelecer lá, pelo menos até o episódio de Anschluss em 1938. Keynes, numa carta de recomendação datada de 1935 ao embaixador soviético Maisky, diz de modo suave que “ele [Wittgenstein] não é um membro do Partido Comunista, mas tem fortes simpatias pelo modo de vida ao qual ele acredita que o novo regime russo representa”8. Seus colegas comunistas da ‘Red Cambridge’, aos quais ele era fortemente associado, o consideravam um forte apoiador e talvez até um aberto e sincero estalinista.

Parece, portanto, que Wittgenstein era de alguma forma dividido nas suas lealdades políticas, de modo que na sua terra natal, Viena, ele seguia uma linha direitista, enquanto em Cambridge ele era um esquerdista – um estranho conto de duas cidades. Não ficou claro se essa posição era por uma pura inaptidão política e ingenuidade ou por alguma política de duplo pensar. Um ex-aluno, chamado Findlay, diz que a personalidade difícil de Wittgenstein “é tecnicamente descritível como ‘esquizoide’: havia algo de estranho, desligado, surreal e incompletamente humano ali”9. Por outro lado, é possível que ele fosse muito mais consistente nas suas convicções e tenha subscrito à paradoxal política de extrema esquerda e direita, conhecida nos anos 1920 como “nacional bolchevismo”, tal como adotada pelos protonazistas Niekisch e Jünger; Ou, como é mais provável, ele chegou a alguma variante peculiar própria combinando todos esses fatores. Sua personalidade altamente reservada dificulta extrair uma imagem do que estava ocorrendo na sua mente sobre tudo aquilo.

Diferente dos outros mestres malignos, Wittgenstein era um recluso que não buscava estabelecer contato direto com qualquer um dos grandes ditadores ou mesmo ter um papel significante na política. Os outros buscaram isso, pois no fundo de seus corações, eles não se consideravam meros seguidores dos seus líderes escolhidos, eles se viam como rivais também, competindo com eles pela expressão intelectual do significado histórico da causa totalitária que defendiam em comum. Isso é bem colocado por Lucien Goldmann, um seguidor de Lukács, durante uma estendida comparação entre seu mestre e seu principal rival político e filosófico Heidegger: “numa perspectiva histórica, Heidegger situa a si mesmo no mesmo nível de Hitler, Lukács no mesmo nível de Stálin e, como ambos expressaram a mesma totalidade no nível de consciência, é permitido dizer que eles entenderam a natureza dos fatos políticos melhor que seus próprios líderes”10. Como mostrarei mais tarde, foi nessa expressão de totalidade em suas filosofias que eles foram inexoravelmente levados a uma expressão totalitarista na política. Mas o passo da totalidade para o totalitarismo não é de forma alguma simples ou óbvio e, por causa de uma razão mais forte (a fortiori) e logicamente considerada, não era necessariamente inevitável esse caminho, apesar de todos os mestres malignos o terem dado.

Gentile foi o primeiro a fazê-lo, pois ele achava que havia entendido o fascismo melhor que Mussolini, dado que ele assimilou a ideologia na sua filosofia da totalidade. Houve um ponto em que Gentile escreveu (como ghost writer) o artigo de Mussolini para a Enciclopedia Italiana contendo a definição oficial sobre o fascismo – enciclopédia que o próprio filósofo editou. Ele estava irritado, pois no mundo da política prática ele fez pouca diferença. Além disso, ele não considerava o seu Idealismo Atualista uma mera filosofia entre as outras, apesar de verdadeira e correta, mas muito mais que isso: era a expressão definitiva do espirito religioso da humanidade. Estava além de argumentação ou debate, pois tinha a história ao seu lado:


Com o advento do Idealismo, a filosofia saiu da sala de aula e da biblioteca, tal como havia feito durante o período glorioso do Risorgimento e entrou no movimento universal do Espírito na magistral estrada da História. E a coisa realmente procede desse jeito, ao ponto de nenhuma polêmica poder pará-la.11

O que permanece não declarado, mas está necessariamente implicado, é que o provedor dessa irresistível força intelectual não é ninguém menos que o próprio Gentile.

Há também mais que uma sutil similaridade de religiosidade megalomaníaca nas ambições dos demais mestres malignos. De acordo com um dos discípulos próximos de Lukács, Ferenc Feher, seu mestre tinha a “ambição intelectual de se tornar um novo Agostinho de uma ecclesia universalis et militans12. Heidegger também tinha aspirações espirituais análogas em relação ao Nazismo, que ele viu como o único movimento capaz de salvar o mundo do destino fatal da tecnologia niilista. Ele viu a si mesmo como líder de um movimento que ia em direção àquilo que seu discípulo Hans-Georg Gadamer descreveu como “a grande renovação da força espiritual e moral do povo que ele sonhou e ansiou como a preparação de uma nova religião da humanidade”13. Não inesperadamente, “mais tarde, quando ele continuou a sonhar seu sonho de uma ‘religião nacional’ apesar de toda a realidade, ele ficou naturalmente muito desapontado com o curso dos eventos”14. (Acima de tudo, presumidamente, por Hitler ter perdido a guerra.) Em contraste com os outros, Wittgenstein não tinha uma ambição religiosa e política imediata para suas obras durante seu tempo e lugar, pois ele tinha esperanças apocalípticas para o futuro. De acordo com seu biógrafo oficial Brian McGuiness, ele acreditou que estava “escrevendo para uma futura raça, para pessoas que pensariam de um modo totalmente diferente; aqui sua similaridade com Nietzsche é muito evidente”15. Não há apenas uma evidente similaridade com Nietzsche a esse respeito, mas até maior similaridade com os outros mestres malignos que foram seus contemporâneos e que tinham similares esperanças para o futuro.

Tais ambições não eram sonhos completamente vangloriosos no turbilhão cultural e político da Europa depois da Primeira Guerra Mundial, época em que os mestres malignos chegaram à maturidade. Na verdade, três deles alcançaram tão rapidamente o poder mundano, que pareceu que os filósofos poderiam ser reis por um dia. Lukács tornou-se Comissário de Cultura na ditadura de Bella Kun e controlou todo o establishment acadêmico e cultural da Hungria por alguns dias em 1919. Anos depois, Gentile ocupou o cargo de Ministro da Educação da Itália por um tempo maior e instaurou a “mais fascista de todas as reformas”, segundo o próprio Mussolini. Heidegger não atingiu posição tão alta no regime de Hitler, mas talvez inspirado por Gentile, como sugere Croce, ele tentou voos até mais altos16. Ele atirou-se com muito ardor nas maquinações políticas e acadêmicas que se seguiram à tomada de poder dos nazistas e na institucionalização da política antiliberal e antissemita do Gleichschaltung, onde Heidegger celebrou e carregou alegremente o título de Reitor de Freiburg.

Apesar das grandes habilidades e devoção às suas causas, em todos os casos os momentos de poder e glória de cada um dos mestres malignos foram esporádicos e curtos. Eles rapidamente expiraram suas utilidades aos seus mestres e superiores políticos nos seus respectivos partidos. Já no exílio, após ter falhado a revolução na Hungria, Lukács logo veio a quebrar o acordo feito com Kun, o líder partidário favorecido por Stálin. Lukács era visto por Stálin como um intelectual menor, subalterno e útil. Gentile se achava melhor que Mussolini, não obstante, foi “chutado para cima” para um cargo honorífico, mas sem poder algum, de dignitário sênior. Heidegger voltou-se para seu retiro acadêmico por sua própria vontade, por razões complexas que  ainda não estão  totalmente claras, mas  podem,  como  sugere  Faria, ter algo que ver com o assassinato de Röhm e suas consequências. Wittgenstein nunca emergiu da sua isolação semimonástica na academia, pois ele era o único que não tinha claras ambições políticas.

Tudo isso, como mostrarei, teve grande influência não apenas na carreira dos mestres malignos, mas também em suas obras, pois essas também desempenharam um considerável grau de função em seus tempos. Os mestres malignos eram da mesma geração pós-1914 dos grandes ditadores; homens que emergiram das trincheiras da guerra e marchas revolucionárias e entraram em movimentos totalitários que se mobilizaram para a guerra total. O caráter das obras deles reflete essa experiência extrema pela qual passou essa geração. Karl Löwith possivelmente foi o primeiro a mostrar como os próprios termos da filosofia primitiva de Heidegger “refletem a desastrosa intelectualidade germânica que se seguiu após a Primeira Guerra Mundial: na base, todos esses termos e conceitos são expressões da amarga e dura determinação que se afirma perante o nada, orgulhosa do desprezo pela alegria, razão e compaixão”17. Algo similar acontece nos trabalhos primitivos dos demais mestres malignos, como mostrarei adiante.

Como os grandes ditadores que fundaram suas causas e fundaram a si mesmos durante o curso de guerras e revoluções, os mestres malignos também tiveram seu “batismo de fogo”. Direta ou indiretamente, todos eles estavam sujeitos à violência da época. Wittgenstein serviu no front com muita bravura; Heidegger tentou fazer parecer que fez muito bem, mas esteve no serviço postal longe da batalha; Lukács também evitou a luta trabalhando no serviço postal, mas ele tentou compensar mais tarde nas subsequentes revoluções; Gentile estava muito velho para o combate, mas mesmo assim se saiu um ótimo propagandista de guerra. Como resultado dessas experiências, todos eles foram submetidos (quase ao mesmo tempo) por um processo quase religioso de conversão. Wittgenstein foi o primeiro a se ‘converter’ em 1916, quando descobriu o Cristianismo primitivo através dos escritos de Tolstói, e fez disso um misticismo inefável e sem doutrina. Gentile converteu-se à ‘religião da nação’ sob o impacto da derrota de Caporetto em outubro de 1917, coisa que, segundo ele, fez os italianos ficarem cientes pela primeira vez do caráter ético e religioso do estado. Esse foi o prelúdio daquilo que seria a adesão ao fascismo onde ele também falou em termos religiosos, insistindo que “como toda fé, o fascismo também tem um caráter religioso”18.

Um recente biógrafo do jovem Heidegger, John van Buren, nota que “os detalhes da conversão filosófica e teológica de Heidegger durante os anos 1917-18 da guerra, estão mais claros para nós nos dias de hoje, mas boa parte deles ainda estão envoltos de escuridão”19. O que fica claro é que Heidegger passou por uma crise de fé que o fez abandonar seu nativo catolicismo e converter-se à uma espécie de ‘protestantismo privado’. Thomas Sheehan afirma que “em carta ao Professor Rudolf Otto [...] Husserl recorda – como se estivesse descrevendo a conversão de um Santo Agostinho moderno – as difíceis horas em que Heiddeger passou por ‘conflitos internos’ que o levaram a ‘mudanças radicais em suas convicções religiosas básicas’. Mas o resultado, conforme Husserl escreveu, foi feliz: Heidegger migrou para o terreno do protestantismo”20. Mais tarde, em 1931, Husserl estava menos otimista com esse ‘feliz’ resultado e disse que “a guerra e suas subsequentes dificuldades levaram os homens ao misticismo”21. A guerra teve efeitos similares em Lukács, que se converteu ao bolchevismo – um credo rejeitado por ele até então, conforme uma de suas amigas próximas, Anna Lesznai, relatou: “entre um domingo e outro, Saulo tornou-se Paulo”22. Essa iluminação da estrada para Moscou deu a ele algum alívio após seus infelizes anos de desejos não satisfeitos, além de objetivos e metas para seus reprimidos, mas ainda indeterminados, desesperos e esperanças escatológicas.

A crença religiosa que cada um dos mestres malignos cultivou pode ser chamada de ‘teologia privada’, algo que mais ou menos aproxima daquilo que no assado se chamaria de uma ‘heresia cristã’. Como notaram Hans Jonas e Karl Löwith, a teologia filosófica de Heidegger é uma versão moderna e secularizada do gnosticismo antigo, assim como afirma, em outros termos, Karl Jaspers em suas notas sobre Martin Heidegger23. A heresia de Lukács é uma versão politizada de um messianismo milenar de forma marxista, uma espécie de credo apocalíptico de uma teologia secular. Um de seus amigos próximos, Ernst Bloch, estava ciente da procedência religiosa das políticas comuns e tentou em 1921, com o livro Thomas Münzer: Theologian of Revolution, delinear os precedentes heréticos do pensamento revolucionário quiliástico:


Os Irmãos do Vale, os cátaros, os valdenses, os albigenses, Joaquim de Fiore, Francisco e seus discípulos, os Irmãos da Boa Vontade, os preservadores da vida comunal, os Irmãos do Livre Espírito, Mestre Eckhart, os hussitas, Müntzer e os batistas, Sebastian Franck, os filósofos do iluminismo, o misticismo humanista de Kant e Rousseau, Weiling, Baader, Tolstói...24

A marca peculiar da heresia de Wittgenstein parte de Tolstói e segue voltando até aos quietistas e outros heresiarcas primitivos. É um retorno às simplicidades dos primórdios do evangelho cristão, ou seja, a crença de que a fé é matéria para o coração e não para a cabeça; que pessoas humildes e crianças estavam mais próximas de Deus e da verdade da vida do que os filósofos e os teólogos. Gentile expôs uma variante herética do catolicismo, que no lugar de Cristo e a Igreja, ele colocou a Nação e o Estado. Ele declarou que sua filosofia, o Idealismo Atualista, era uma religião, ou uma ‘filosofia teologizzante’ nos termos de Vico.

Os mestres malignos estavam totalmente cientes da procedência religiosa de seus pensamentos e estavam ocasionalmente preparados para admitir isso nos seus escritos e conversas particulares mais do que em suas obras publicadas. Em uma carta de 19 de agosto de 1921, que Heidegger endereçou ao seu discípulo Karl Löwith, ele escreve: “Eu trabalho combinada e facticamente fora do meu ‘eu sou’, fora de toda minha origem intelectual e fática, meio, contexto de vida e qualquer outra coisa que está disponível para mim como experiência de vivência [...] À essa minha facticidade, eu diria, de modo breve, que sou um ‘teólogo cristão’”25. Wittgenstein declarou no fim de sua vida ao seu discípulo Drury: “Eu não posso deixar de olhar todos os problemas de um ponto de vista religioso”26. Gentile declarou publicamente ser católico e sua filosofia cristã, apesar da sua igualmente pública hostilidade à Igreja. Lukács, embora convertido ao luteranismo no começo de sua vida, ficou fortemente atraído para o catolicismo, ao qual ele elogiou com termos extravagantes, junto com seu amigo Bloch. Ele tornou-se comunista mais tarde, pois o viu como sucessor moderno do catolicismo, conforme escreveu que “o sistema do socialismo e sua visão de mundo, o marxismo, formam uma unidade sintética – talvez a mais implacável e rigorosa síntese desde o catolicismo medieval”27. Em carta datada de 1913 ele comenta que “a última força ativa cultural na Alemanha, o socialismo naturalista-materialista, deve sua eficácia a elementos religiosos velados”28. Não é surpresa Thomas Mann ter usado Lukács como modelo para Leo Naphta, um jesuíta de origem judia que tenta casar ideias comunistas revolucionárias sob o manto da Igreja.

Digo aqui meramente como um fato interessante, que talvez não seja mera coincidência, que todos os mestres malignos e quase todos os ditadores totalitários daquele contexto foram atraídos ou se atraíram por uma forma pervertida de catolicismo. A única exceção é Stálin, que apesar disso, tornou-se seminarista na Igreja Ortodoxa da Geórgia, que mesmo assim guarda algumas semelhanças. Essas semelhanças refletem a si mesmas de numerosas formas no pensamento dos filósofos e nas práticas organizacionais e simbólicas dos políticos. Isso é algo que os historiadores não deram muita atenção. Eu não trarei isso à tona, pois dar o devido tratamento histórico a esse assunto está além do escopo deste livro.

Os mestres malignos não foram os únicos a desenvolver uma filosofia teológica nesse período; muitos outros o fizeram e não necessariamente derivaram do catolicismo. O protestantismo, a ortodoxia russa e o judaísmo também proveram bases para essas filosofias que hoje são coletivamente denominadas “existencialismo”. Karl Löwith, dentre suas várias menções de pensadores, traça uma linha paralela entre Heidegger e o existencialista judeu Franz Rosenzweig (que era amigo do filósofo sionista Martin Buber); essa linha foi ironicamente traçada à luz da conhecida hostilidade de Heidegger aos filósofos judeus. Rosenzweig, que também filosofou fora de suas experiências de guerra, defendeu a interpretação da teologia e da filosofia,como nota Löwith:

Rosenzweig diz que a filosofia dos dias atuais demanda que os teólogos filosofem. Filosofia e teologia dependem uma da outra e juntas produzem um novo tipo de filósofo teólogo. Problemas teológicos precisam ser traduzidos para o humano e o humano precisa ser levado aos teológicos – uma caracterização desse novo modo de pensar que pode ser aplicado tanto à Heidegger como à Rosenzweig, apesar de a atitude de Heidegger em face ao cristianismo ser de afastamento, enquanto a de Rosenzweig em relação ao judaísmo é de retorno.29

Löwith deixa claro que muitos pensaram nessa linha ao dizer que “o mesmo espírito dessa época produziu os primeiros escritos de Eugen Rosenstock-Huessy, Martin Buber, H. e R. Ehrenberg, Carl von Weizsäcker, F. Ebener e o começo da ‘dialética teológica’, que também pertence a esse período histórico posterior à Primeira Guerra Mundial”30. Pode-se facilmente adicionar a essa lista vários outros nomes de um lado ao outro da Europa.

Mas se essa era a tendência comum característica de toda uma geração – ou “espirito da época” por assim dizer, por que foram os mestres malignos aqueles que o arrebataram tão decisivamente de forma que suas filosofias se tornassem dominantes mais tarde? Em outras palavras, o que distinguiu os mestres malignos dos vários outros que também produziram uma filosofia teologizzante naquela época? Uma resposta simplicista seria dizer que eles eram os mais capazes e geniais, enquanto os outros, de alguma forma, eram inferiores. Mas essa resposta não basta, uma vez que os mestres malignos tinham um ou mais colegas que não eram inferiores como pensadores, mas que não atraíram o mesmo nível de atenção e influência. Jaspers é tão pior que Heidegger ou Bloch menos capaz que Lukács ou Moore e Schlick não são páreos para Wittgenstein? Por outro lado, dizer que os mestres malignos eram mais astutos por apresentarem uma ‘mensagem’ religiosa que a época pedia, de uma forma mais adequada (ou disfarçada) aos incrédulos, de modo a não recorrer às Igrejas e aos credos, seria dizer que eles eram superiores apenas no charlatanismo. Mas como sublinhei anteriormente, eles não eram nem gênios e nem charlatães em qualquer sentido óbvio. É verdade que eles eram pensadores de grande astúcia – principalmente quando faziam uso do oportunismo – e sabiam mistificar e confundir seus pensamentos de modo a dá-los uma aura de inacessibilidade e grande profundidade, e isso foi sem dúvida um fator de sucesso, mas somente isso não pode ser a explicação toda.

Pelo menos parte da explicação deve ser encontrada nas personalidades pouco usuais e o efeito que elas exerciam sobre os outros, particularmente em estudantes jovens e seguidores, numa época em que ‘personalidade’ era um fator crucial para determinar quem seria seguido, quais ideias seriam aceitas, fossem nos campos político, intelectual ou artístico. É indubitável o efeito carismático que os mestres malignos tinham sobre seus amigos e pupilos; até seus mentores ficaram especialmente impressionados desde o início. Husserl, escrevendo uma carta de referência de Heidegger, endereçada a Paul Natorp em Marburg, não deixa de mencionar a ‘personalidade original’ (originelle Persönlichkeit) de seu ‘Privatdozent’. Hannah Arendt, outrora uma jovem estudante e amante de Heidegger, atribui muito do sucesso de Heidegger ao fator personalidade: “Na verdade, é discutível se o sucesso incomum deste livro (Ser e Tempo) – e não apenas o impacto imediato que tinha dentro e fora do mundo acadêmico, mas também a sua extraordinária influência duradoura, com o qual poucas publicações deste século podem ser comparadas – teria sido possível se não fosse precedido pela reputação do professor entre os alunos...”31. Findlay, que encontrou muitos filósofos durante sua longa vida, escreveu quase em seu fim: “Wittgenstein tem um carisma intelectual muito maior do que qualquer outro filósofo que já encontrei”32. Com poucas exceções, como o próprio Findlay, a maioria dos pupilos de Wittgenstein tornaram-se discípulos com uma devoção ao longo de toda a vida a ele e suas obras. Os alunos de Gentile não eram menos devotos a ele, pelo menos por um tempo, pois alguns romperam com ele quando ele se tornou um fascista, e muitos quando o fascismo colapsou; pouquíssimos persistiram na intocável lealdade. Porém, no seu apogeu na década de 1920, seu tradutor para o inglês, o filósofo H. Wildon Carr escreveu que “Gentile foi famoso em seu país por conta de seus escritos históricos e filosóficos e muito mais pelo fervor e o número de discípulos que atraiu”33. Lukács lecionou em universidade apenas quando já estava no ocaso de sua vida, quando sua influência sobre os alunos já era profunda; Mas muito antes disso, no começo de sua vida intelectual, seus amigos do dito Círculo Dominical em Budapeste já o tratavam como um mestre estabelecido, um reconhecido gênio.

Como e porque os mestres malignos conseguiram impressionar seus alunos, amigos e mentores, é bem explicado por Hans Jonas, um dos alunos de Heidegger em Freiburg no final da década de 1920, onde havia ido para estudar com Husserl, que pareceu muito menos impressionante para ele:

Edmund Husserl e Martin Heidegger: dos dois, Heidegger era muito mais excitante... Primeiramente, porque ele era muito mais difícil de entender. Isso era estranhamente atrativo para um jovem e ardente aluno de filosofia que ainda estava no estágio de aprendizado; uma estranha atração, um convincente pressuposto de que havia algo escondido por trás e que valia a pena ser compreendido, uma sensação de algo estar havendo ali, que uma nova obra estaria realizando algo novo... Aqui se está chegando perto do centro do pensamento filosófico. Isso ainda é um mistério, mas algo está acontecendo aqui, de modo que (como eu deveria dizer isso), as preocupações derradeiras do pensamento em geral e da filosofia estão sendo tratados.34

Pode-se quase certamente desenterrar testemunhos análogos para as habilidades de ensino, a extraordinária capacidade de excitar e mistificar ao mesmo tempo no decorrer da vida dos demais mestres malignos. Partindo disso, não deve se supor que eles eram apenas capazes de trabalhar com jovens incultos de mentes impressionáveis, pois não é raro encontrar intelectuais e filósofos mais velhos e experientes que sucumbiram à influência hipnotizante do mesmíssimo culto da ‘nova’ pregação da absoluta auto certeza que não admite dúvidas. A esse respeito, é instrutivo ler as anotações de Friedrich Waismann aos monólogos de Wittgenstein – pois eles não podem ser chamados de ‘conversação’ – perante alguns distintos filósofos do Círculo de Viena, tais como Schlick, Carnap, Feigl, Hahn, entre outros. Eles ouviram respeitosamente Wittgenstein expor pontos de vista que soariam repugnantes para muitos deles, especialmente aqueles referentes à ética, religião e outros filósofos, tal como Heidegger, que àquela época atraia a simpatia de Wittgenstein, mas não dos outros que o assistiam35. Mais tarde, alguns deles acordaram do feitiço hipnótico, enquanto outros, como Schlick, jamais acordaram. Já Waismann e alguns outros não conseguiram se livrar totalmente do feitiço. O que é que fazia tais pessoas serem suscetíveis aos mestres malignos?

No clima volátil que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, quando velhas verdades e velhos mestres que as mantiveram caíram em total descrédito – junto com a velha ‘cultura burguesa’ que as fomentaram –, é que os cultos à juventude proliferaram e qualquer um que tivesse ideias atrevidas, arrojadas ou paradoxais tinha um público pronto para ouvi-lo. Naquele tempo de turbilhões, tanto dentro como fora das universidades, ‘apelo carismático’ e ‘personalidade’ foram fatores determinantes para o sucesso e a fama em todas as esferas da sociedade. Nas universidades, os professores que eram pregadores, foram para frente; nas ruas, nos baixos níveis das políticas de massa, os grandes demagogos começavam a ensaiar um agito carismático nas multidões reunidas. Há nítidos paralelos entre o que estava acontecendo dentro das salas de aula universitárias e fora delas. O vácuo criado pelo descrédito da antiga geração e cultura deu espaço para novos – e autointitulados – salvadores, profetas e líderes. Num tempo de angústia e aflição em todos os aspectos (moral, político, artístico, intelectual e econômico), os novos credos, ideologias, movimentos artísticos e, para um público mais seleto, novas filosofias, eram todos ansiosamente recebidos de braços abertos.

Em suas reflexões autobiográficas, Löwith apresenta as pressões que o fizeram ‘escolher’ Heidegger como seu mestre:

Naqueles anos decisivos após o colapso de 1918, minha amizade com P. Gotheim me colocou em um dilema: entrar no círculo que havia em volta de Stephan George e Friedrich Gundolf ou me tornar um seguidor solitário de Heidegger que, embora de uma forma diferente, não deixava de exercer força ditatorial sobre as mentes jovens, apesar de nenhum de seus ouvintes terem entendido onde ele queria chegar. Em tempos de dissolução, há diferentes tipos de “Führer” que se assemelham uns aos outros apenas na medida em que rejeitam radicalmente o que existe e se determinam a apontar um caminho para “a única coisa que importa”. Eu decidi ficar com Heidegger, e essa decisão positiva também formou o alicerce da crítica que eu publiquei trinta e cinco anos depois sob o nome de Heidegger: Denker in dürftiger Zeit (1953), que serviu para quebrar o feitiço de uma imitação estéril por parte de seus seguidores fascinados e torná-los conscientes da questionabilidade do método de pensamento histórico-existencial de Heidegger.36

Infelizmente, quando Löwith publicou sua crítica, já era tarde demais, uma vez que Heidegger, assim como os demais mestres malignos, já havia formado um sustentáculo inquebrável feito de muitos seguidores, onde algumas deserções não fariam diferença.

Sob essas circunstâncias pouco usuais, os mestres malignos exerceram a influência cultural mais paradoxal possível, pois eles são considerados um dos primeiros modernistas antimodernistas. Essa expressão paradoxal serviu para transmitir o ponto de vista modernista pelo qual os mestres malignos atacaram o próprio modernismo de onde eles próprios vieram. Max Weber refere a esse tipo de desenvolvimento paradoxal – ao qual ele observou antes de 1918, ou seja, antes de qualquer mestre maligno surgir no cenário filosófico – como uma “forma intelectualista moderna do irracionalismo romântico”, uma expressão que é implicitamente paradoxal37. Weber afirma que essa tendência a procurar uma ‘experiência’ pseudo-religiosa é característica da geração que ele chama de “juventude alemã”. Essa é a mesma geração a qual os mestres malignos apelaram, imediatamente após 1918, com obras que incorporavam de variadas maneiras a “forma intelectualista moderna do irracionalismo romântico”. Fosse com o “irracionalismo” anticientífico, os devaneios antiliberais ou com os apelos pseudo-religiosos, essas obras exemplificaram as tendências às quais Weber declarou suas restrições antes mesmo que elas fossem escritas; Uma critique avant la lettre, por assim dizer.

A ‘juventude’ a quem Weber endereçou seus avisos não ouviu suas orientações, tanto para a política como para a filosofia. A declaração dele de que “o profeta por quem, na nossa geração mais nova, tanto anseiam simplesmente não existe” não foi levada em conta38. Tampouco aceitaram que “Se não houver tais homens, ou se sua mensagem já não for recebida com confiança, então, certamente não forçaremos o seu aparecimento nesta Terra, fazendo que milhares de professores, como assalariados privilegiados do Estado, tentem, como pequenos profetas em suas salas de aula, assumir tal papel”39. Dos milhares de professores que tentaram e falharam, alguns tiveram sucesso em serem aceitos como “profetas ersatz[i] de gabinete”, ou literalmente, sábios de cadeira universitária.



[i] Nota do tradutor.: Feito para ser usado como substituto por ser de qualidade inferior. 



REDNER, Harry.  Mestres Malignos. Tradução de Leonildo Trombela Júnior. 2014,  pp. 4-22.


 - - Continuação (e término) na PARTE 2 - -

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